Nos últim os anos, a tradicional visão dualística da natureza e
destino hum anos tem sofrido ataque de d iversos estud iosos da
Bíblia, filósofos e cientistas. Essa visão vem sendo considerada
contrária às Escrituras, à razão e à ciência. O livro Imortalidade ou
Ressurreição?, de Sam uele Bacchiocchi, baseado em pesquisas
recentes, desafia os cristãos a retomarem o ensino bíblico de que o
corpo e a alma são uma unidade indissolúvel, criada, redim ida e
restaurada, finalmente, por Deus.
Imortalidade ou Ressurreição? é um livro im portantíssim o para
os dias de hoje. Apresentando uma contundente argum entação
bíblica, ele desm ascara o mais antigo e possivelm ente o maior
engano de todos os tempos, a saber, que os seres hum anos
possuem alma imortal que vive independente do corpo físico. Este
livro ajudará você a entender com o este enganoso ensino da
imortalidade incondicional tem prom ovido um conjunto de
crenças erróneas que afeta negativamente a prática e o
pensam ento cristãos. O m ais importante: este livro aumentará seu
apreço pelo g lorio so plano d iv ino para sua vida presente e eterna,
com Cristo.
A UNASPRESS, Imprensa Universitária Adventista, publica
Imortalidade ou Ressurreição? com a certeza de contribuir para a
d ifusão da correta com preensão de um dos mais atuais temas
bíblicos: a natureza e destino humanos.
Agência B rasileira do ISBN
ISBN 9 7 8 - 8 5 - 8 9 5 0 4 1 ־20־
■
9 V 8 8 5 8 9*504201
[ U N A S P R E S S ]
Centro Universitário Adventista
de São Paulo
Campus Engenheiro Coelho
IMORTALIDADE O U RESSURREIÇÃO?
Uma abordagem bIblica sobre a natureza humana e o destino eterno
Título do original em inglês: Immortality or Ressunectionf A Biblical Study on Human
Nature and Destiny
Autor: Samuelc Bacchiocchi
Todos d o direitos reservados para a UN ASPRESS. N ão é permitida a cópia
total ou parcial sem autorização prévia dos editores.
Tradução: Azenilto de Btito
Editoração: Vanderlei Domclcs '
Revisão: André Leite, Renato Groger e Tiago Cabreira
Capa: Geyyison S. Ludugério
Diagramação: Natália Ferreira e Tiago Cabreira
Bacchiocchi, Samuele
Imortalidade ou Ressurreição? uma abordagem bíblica sobre a natureza
humana e o destino eterno
T ed.
UNASPRESS, 2007
Engenheiro Coelho, SP
1. imortalidade; 2. ressurreição; 3. Escrituras
l3 edição
3.000 exemplares
2007
Impresso no Brasil
Primed in Brasil
Para adquirir um exemplar, entre em contato com:
UNASPRESS - Imprensa Universitária Adventista
Tel. (19) 38589055־ / Home Page: www.unaspress.unasp.edu.br
n
http://www.unaspress.unasp.edu.br
—- V
...:vii
ix
Prefácio à edição em português
Prefácio à edição em inglês ...
Abreviaturas.:.... ,..-...... ....-....־■:
1
7
Introdução
C apítulo 1........ ... .......— ---------- : ■ ··------------
O debate sobre a natureza e'o destino humanos
27III—NI—II lh-J.ll—II .!-·Hl ״ IIII ··Ml*Hl ·I—·»·l-*l **— l».'l-·" r*-.■■!■-■■ ■I ···IIHI I■--"C apítulo 2 ............ .......■t....
O ponto de ;vista bíblico da natureza humana
69C apítulo 3 .......׳ ................... .. ................ .... ......... -........-
A visão da natureza do homem no NovoTestamento
1.13
145
C apítulo 4
A visão bíblica da morte
C apítulo 5 : -----------
O estado dos mortos
185C apítulo 6 ... ........................... ...;......... ,...-.....
Inferno: tormento, eterno ou aniquilamento?
2 4 3C apítulo 7 - -...— ------־-·—
A consumação da redenção
À ED1ÇÀO EM PORTUGUÊS
Durante as últimas décadas os redutos evangélicos■ têm testemunhado um
acalorado debate sobre a rejeição progressiva da doutrina da imortalidade da alma1
e seu desdobramento direto, expresso na-noçao de inferno e tormento eterno
consciente. Muitos teólogos ê eruditos bíblicos do peso de John Stott, Michael
Green, John Wenham, Philip Edgcumbe Hughes, Clark Pmnokz e Oscar Cull-
mann, entre outros, têm se afastado da. posição protestante tradicional sobre
destino da alma, para uma. adesão ao ensino bíblico. Clark Pinnock,: em seu
aclamado Four Vieun ofHdl, fala por muitos ao indicar que existem boas razões■
para se questionar o tradicional ensino■ da imortalidade da. alma e a existência
do inferno, observando, porém, “que a razão mais importante é o fato de que a
Bíblia não ensina isto. Contrário às reivindicações de tradicionalistas, estas não
são doutrinas bíblicas3.״ Isto equivale dizer que, para muitos evangélicos, hoje, o־
dualismo grego entre corpo e alma'imortal passou a ser visto com forte suspeita,.
como o ensino de uma antropologia estranha às Escrituras. Desta forma, aquilo
que. no passado foi marca quase exclusiva dos adventistas do sétimo dia, agora
ganha uma audiência evangélica mais amplà.
O presente trabalho de Samuele Bacchiocchi, Imortalidade ou Ressurreição! .
é, realmente, o que indica seu subtítulo:, ümá abordagem bíblica sobre a natu
reza humana e o destino eterno. Tal obra representa enorme.contribuição para
a clarificação do assunto. Discutido com sólida argumentação bíblica e precisão
lógica,.o autor desacredita a noção da imortalidade, que historicamente repre
sentou um considerável fardo dogmático na consciência da igreja cristã e um
obstáculo à compreensão do evangelho. Além disto, a idéia da imortalidade, por
séculos, foi um elemento inibidor da eseatologia bíblica; minando, por exemplo,
a fé no segundo advento è na ressurreição, além de se tornar uma porta aberta
■para os enganos associados a ela. Bacchiocchi ressalta que a crença tradicional da
imortalidade ou de que Deus faça os ímpios sofrerem em um interminável inferno
é antibíblica, mais dependente do belenismo e da dicotomia platônica, do que
da revelação. Textos bíblicos tradicionalmente utilizados por uma questionável
hermenêutica,-em apoio à tradição, recebem tratamento lúcido quanto ao seu
verdadeiro significado.
Estou seguro de que: este Volume íqi mlecerá a convicção dos que já ado
tam a posição bíblica quanto a nãtüreza e^dèstinò bumanos, criara um positivo
ponto de contato pára o diálogo com cristãos dê convicções diferentes, além de
representar um poderoso desafio para aqueles qué sinceramente desejam saber o,,
que as Escrituras ensinam sobre tão relevante questão.
N o t a s ׳ .־ ׳ ■ ■
1 Para uma boa introdução a este debate, veja o capítulo de John Wenham, ״The Case for,.
Condicional Immortality”, ■em Uniuersãlísni anã the:Doctrine of Hell, N. M. S. Cameron ed, (Grand
Rapids: Baker Books House, 1992). Este livro é um tipo de relatório da .Quarta Conferência, de
Edinburgh sobre Dogmática Cristã,
.. . 2 Veja John R, W Stott, Essentials: A LiberaFEvangelical Dialogue (Londres: Hodder & Stou
ghton, 1988). Stott observa que a Bíblia aponta ira direção inversa dáquild que tem sido mantido pela
tradição protestante, á qual segundo ele “deve ser submetida à suprema autoridade das Escrituras01
( p . 306- 326) . . ; . : - ־ ■ ■ ■ ■ ' ־ ■■ · ■ ■. ■■■■ ■ '
d Clark H. Pinnock, Four Views of Hell (Grand Rapids: Zondervan, 1982), p,. 145,146, Talvez
a obra mais significativa produzida, como parte deste debate entre evangélicos foi publicada em
1989. pela Inter Varsity Press e Eerdmans! The True image: The. Ongm and Destiny of Man in Christ,
do erudito anglicano Philip Edgc'umbe Hughes. Veja ainda Peter Tbon, Heaven and HeU. (Hashiville:
Thomas Nelson, 1986) ,
, A.MIN A . R o d o r , Th.D.
" P r o f e s s o r d e T e o l o g ia S is t e m á t ic a e d ir e t o r d o S e m in á r io
' ■ A d v e n t is t a La t in o - Á m e r ic a n o d e : T e ò l o g ía
U n a s p , (Ca m p u s E n g e n h e ir o C o e l h o
À EDIÇÃO EM INGLÊS
Permitam-me dar as boas-vindas a mais um esplêndido livro do Dr. Samuele
Bacchiocehi. Na tradição dé Oscâr Cullmami, o Dr, Bacchiocehi demonstrou
numa forma muito mais completa 0 contraste entre a esperança apostólica cristã
pela ressurreição dos mortos e a expectativa helenística da sobrevivência da alma
imortal. Nesta fina obra, ele oferece um estudo bíblico profundo da natureza
humana como
,fundamental deste assunto para
toda a estrutura das crenças e práticas cristãs. Faz-se, pois, imperativo que dili-
gentemente examinemos o que a Bíblia realmente ensina sobre esse tema vital.
Isso faremos ao investigar nos capítulos 2 e 3 o ponto de vista bíblico da natureza
humana, e nos capítulos 4 a 7 o ensino bíblico sobre o destino humano.
R e f e r ê n c ia s
1 John A. X Robinson, The Body (Londres, 1952), 16.
2 Reínhold Niebuhr, The Nature anã Destiny o/Man (N. York, 1941), 4-17.
3 George E. Ladd, A Theology of the New Testament {Grand Rapids, 1975), 457.
4 John W. Cooper, Body, Soul and Life Everlasting. Biblical Anthropology arid the Monism-Dualism
Debate (Grand Rapids, 1989), 3.
5Ibid., 1.
6 Ibid., 4.
7 Oscar Cullmann, Immortality of the Soul or Resurrection of the Dead? The Witness of the New Testa-
merit (N. York, 1958), 5. ,
8 C. H. Pinnock, “The Conditional View”, in Four Views on Heíl, W. Crockett, ed., (Grand Rapids,
1993), 161.
9 Ibid., 162.
10John W. Stott e David Edwards, Essentials: A Liberal-Evangelical Diabgue (Londres, 1988),
319-320.
11 Ver Christianity Today (I6de junho de 1989), 60-62. No volume da conferência, John Ankerberg
alega que negar o ponto de vista tradicional da imortalidade da alma e da punição eterna do
inferno, equivaleria a negar a divindade de Cristo (Ver K. S. Kantzer e Carl F. Henry., eds.,
Evangelic«/ Affirmations [Grand Rapids, 1990]}.
12 Citado em G. C. Berkouwer, The Return of Christ (Grand Rapids, 1972), 34· A mesma opinião é
expressa por Russell Foster Aldwinckle, Death in the Secular City (Londres, 1972) , 82.
13 Conrad Bergendoff, “Body and Spirit in Christian Thought”, The Lutheran Quarterly 6 (agosto
de 1954), 188-189.
14Uma excelente pesquisa sobre como o dualismo corpo-alma tem contribuído para o surgimento
do secularísmo moderno e a distinção entre a vida secular e espiritual ou religiosa se acha em
Brian Walsh e Richard Middleton, “The Development of Dualism”, capítulo 7 em The Transfor-
ming Vision (Downers Grove, Illinois, 1984).
13 Citado por D. R. G, Owen, Body and Soul A Study on the Christkm View of Man (Filadélfia, 1957), 28.
16 Do poema de John Donne, “The Anniversary”.
O DEBATE SOBRE A NATUREZA E O DESTINO HUMANOS
17 Henlee H. Barnette, The Church and Ecological Crisis (N. York, 1972), 65.
,a Encyclopedia Americana, ed- de 1983, s, v. ‘*Holistic medicine294 ,״.
19 Citado por Norman Cousins, Anatomy of an illness (N. York, 1979), 133. Entre muitos livros sobre
medicina holística, os seguintes merecem destaque: David Allen et al., Whole Person Medicine
(Downers Grove, Illinois, 1980); Ed Gaedwag, ed., Inner Balance: The Power o f Holistic Healing
(Englewood Cliffs, NJ, 1979); Morton Walker, Total Health: The Holistic Alternative to Traditional
Medicine (N. York, 1979); Jack La Patra, Healing the Coming Revolution in Holistic Medici.
2 5
CAPÍTULO 2
O PONTO DE VISTA BÍBLICO DA
NATUREZA HUMANA
A pergunta suscitada pelo salmista ‘que é o homem» que dele Te lembres?”
(SI 8:4) é uma das indagações mais fundamentais que alguém teria a considerar. É
fundamental porque sua resposta determina o modo pelo qual vemos a nós mes
mos, a este mundo, a redenção e a nosso destino final
Nenhuma era aprendeu tanto e tantas coisas sobre a natureza humana do
que a nossa, contudo nenhuma era sabe menos a respeito do que o homem re
almente é. Tendo perdido sua consciência de Deus, muitas pessoas hoje estão
basicamente preocupadas com sua existência presente. A perda de consciência
de Deus torna muitas pessoas incertas quanto ao significado da vida, porque é
somente com referência a Deus e a sua revelação que a natureza e destino da vida
podem ser verdadeiramente percebidos.
A questão da natureza humana tem sido preocupação constante na histó
ria do pensamento ocidental No capítulo 1 fizemos notar que, historicamente, a
maioria dos cristãos tem definido a natureza humana dualisticamente, que con
siste de um corpo material, mortal, e uma alma imaterial, imortal, que sobrevive
ao corpo na morte. A começar com o Iluminismo (um movimento filosófico do
século 18), tentativas têm sido feitas para definir o homem como uma máquina
que faz parte de um gigantesco maquinísmo cósmico. Sendo assim, os seres hu
manos estariam aprisionados inescapavelmente num universo determinístico e
seu comportamento é definido por forças tão impessoais e involuntárias quanto
fatores genéticos, secreções químicas, educação, criação e condicionamento so-
Im o r t a l id a d e o u R e s s u r r e iç ã o ?
ciai. As pessoas não têm uma alma imaterial, imortal, somente um corpo mortal,
material, que é condicionado pelo determinismo do maquinário cósmico.
Essa visão materíalístíca deprimente que reduz os seres humanos à condição
de uma máquina ou de um animal nega o ponto de vista bíblico do homem criado
à imagem de Deus. Em vez de ser ,‘semelhante a Deus”, o ser humano é reduzido a
ser “como um animal”. Talvez como reação a essa visão pessimística, vários cultos
e ideologias modernas e pseudo-pagãs (como a Nova Era) deificam os seres huma
nos. O homem nem é ”semelhante a um animal”, nem “semelhante a Deus”, ele é
deus. Ele conta com poder divino inerente e recursos que aguardam ser liberados.
Esse novo evangelho humanístico é popular hoje em dia porque desafia as pessoas
a buscarem a salvação dentro de si mesmas, porque as desafia a explorar e liberar
o potencial e recursos que, no seu íntimo, estão adormecidos.
O que estamos vivenciando hoje é uma violenta reversão do pêndulo de um
ponto de vista materialista extremo da natureza humana para um ponto de vista de
deificação extremo e místico. Nesse contexto, as pessoas são confrontadas com duas
escolhas; ou os seres humanos nada são, senão máquinas pré ׳־programadas, ou são
divinos com potencial ilimitado. À resposta cristã a esse desafio deve ser buscada
nas Sagradas Escrituras que propiciam a base para definir nossas crenças e práticas.
Nosso estudo revela que a Escritura ensina que nem somos máquinas programadas,
nem seres divinos com potencial ilimitado. Somos seres criados à imagem de Deus e
dele dependentes para nossa existência neste mundo e no mundo porvir.
O b je t iv o s d o c a p ít u l o
Este capítulo busca compreender o ponto de vista veterotestamentário da
natureza humana examinando quatro termos antropológicos proeminentes: alma,
corpo, coração e espírito. Os vários significados e empregos desses termos são
analisados para determinar se qualquer deles é alguma vez utilizado para denotar
uma substância imaterial que age independentemente do corpo.
Nosso estudo indica que o Antigo Testamento não distingue entre os órgãos
físicos e espirituais. Isso porque o conjunto de funções humanas mais elevadas,
tais como sentir, pensar, saber, amar, observar os mandamentos de Deus, louvar
e orar é atribuído não só aos órgãos "espirituais” da alma e espírito, mas também
aos órgãos físicos como o coração e, ocasíonalmente, aos rins e vísceras. A alma
(nephesh) e o espírito (ruach) são empregados no Antigo Testamento para denotar,
não entidades imateriais capazes de sobreviver ao corpo após a morte, mas uma
gama completa de funções físicas e psicológicas.
Ao empreendermos esta investigação devemos ter em mente que os escrito
res bíblicos não estavam familiarizados com a moderna fisiologia ou psicologia. Eles
não sabiam necessariamente, por exemplo, que a sensação que experimentamos
U ΡΟΝΤΟ DE VISTA BÍBLICO DA NATUREZA HUMANA
quando nossa mão toca um objeto é causada por nervos que transmitem a informa
ção ao cérebro, A palavfa “cérebro” não ocorre na Bíblia em inglês [N.T.; nem em
português], Os autores bíblicos nada sabiam do sistema nervoso ou respiratório. Na
maior parte eles definiam a natureza humana em termos do que viam e sentiam.
Este capítulo divide-se em cinco partes principais. A primeira parte examina
o que o relato da criação nos diz a respeito da constituição original da natureza
humana, As quatro partes subseqüentes
,analisam os quatro termos fundamen
tais da natureza humana que encontramos no Antigo Testamento: alma, corpo,
coração e espírito, Nossa investigação indica que todos esses termos não descre-
vem substâncias inteiramente diferentes, cada uma com suas próprias funções
distintas, mas as capacidades e funções inter-relacionadas e integradas da mesma
pessoa. O fato de que uma pessoa consiste de várias partes que são integradas,
inter-relacionadas e funcionalmente unidas, não deixa margem à noção da alma
ser distinta do corpo. Deste modo, remove a base para a crença na sobrevivência
da alma por ocasião da morte do corpo.
A NATUREZA HUMANA NA CRIAÇÃO
C r i a ç ã o , q u e d a e r e d e n ç ã o
Ao buscar entender o ponto de vista bíblico da natureza humana, devemos
reconhecer primeiro que o sentido da vida humana é definido nas Escrituras em
termos da criação, a queda no pecado e o plano de Deus da redenção. Essas três
verdades básicas são fundamentais para entender a perspectiva bíblica da natu
reza e destino humanos. Cronologicamente, essas são as primeiras três verdades
que encontramos em Gênesis 1 a 3, onde ocorre o primeiro relato da criação, da
queda e da promessa de redenção. Tematicamente, tudo o mais nas Escrituras é
um desenvolvimento desses três conceitos. Eles propiciam o prisma mediante o
qual a existência humana, com todos os seus problemas, é vista e definida.
Quando Jesus abordou a questão do casamento e divórcio, ele primeiro a ana
lisou em termos do que o casamento deveria significar quando da criação. A partir
disso, Ele a considerou pela perspectiva da queda, porque o pecado explica a razão
da permissão para o divórcio (Mt 19:1-8), Semelhantemente, Paulo apela â criação,
à queda e à redenção para explicar a distinção dos papéis entre homens e mulheres
(ICo 11:3-12; lTm 2:12-14), bem como sua igualdade em Cristo (G13:2S).
Quando consideramos a natureza humana a partir da perspectiva bíblica da
criação, queda e redenção, imediatamente vemos que a criação nos fala a respeito
da constituição original da natureza humana; a queda a respeito de sua condição
presente; e a redenção, a respeito da restauração sendo realizada no presente e
Im ortalidade ou Ressurreição?
consumada no futuro- Assim, uma definição bíblica abrangente da natureza hu
mana deve ser levada em consideração coiti o que a natureza humana era por
ocasião da criação, o que se tomou após a queda, e o que é agora e se tornará no
futuro como resultado da redenção,
A CRIAÇÃO DO HOMEM
O ponto de início lógico para o estudo da perspectiva bíblica da natureza
humana é o relato da criação do homem. Empregamos aqui o termo “homem”
como utilizado nas Escrituras, ou seja, incluindo tanto o homem quanto a mulher.
A primeira importante declaração bíblica é encontrada em Gênesis 1:26 e 27:
“Então disse Deus: ‘Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa seme
lhança’ ... Assim criou Deus o homem à sua própria imagem, à imagem de Deus o
criou; macho e fêmea os criou”.
O primeiro relato da criação do homem nos diz que a vida humana teve
início, não como resultado de forças naturais casuais ou uma mutação aciden
tal no mundo animal, mas como resultado de um ato criativo de Deus. Fql
após o Senhor ter chamado à existência a Terra com toda a sua vegetação e
animais que Ele anunciou a criação do homem. E como se as pessoas fossem o
enfoque específico da criação de Deus. A impressão transmitida pela narrativa
é de que quando Deus chegou à criação do homem, passou a dedicar-se a algo
diferente e distinto.
Ao fim de cada estágio da criação do mundo, Deus parava para contemplar o que
havia feito e considerava-o como “bom״ (Gn 1:4, 10, 12, 18, 21, 25). Então, Deus se
dispôs a criar um ser que pudesse ter o senhorio sobre sua criação; um ser com o qual
Ele pudesse caminhar e conversar. O advérbio “então”, no início do verso 26, sugere
que a criação do homem foi algo especial Todos os atos criativos de Deus antenores
são apresentados como uma série contínua ligada pela conjunção V ’ (Gn 1:3, 6, 9,
14, 20, 24). Mas quando a ordem cósmica da criação foi concluída e a Terra estava
pronta para sustentar a vida humana, então o Senhor expressou sua intenção de criar o
homem. “Então disse Deus, façamos o homem” (Gn 1:26). Após criar o homem, Deus
pronunciou “muito bom”, considerando sua criação inteira (Gn 1:31).
U m a c r ia ç ã o especial de D eus
Essa declaração original, divina, sugere duas verdades fundamentais. Primei-
ratnente, o homem é uma criação especial de Deus cuja vida depende dele. Sua vida
deriva de Deus e continua somente por causa da misericórdia de Deus. Esse senso
de contínua dependência humana do Altíssimo é básico ao entendimento bíblico
da natureza humana. Deus é o Criador e os seres humanos são criaturas depen
dentes dele para sua origem e continuação de sua existência.
O PONTO PH VISTA RÍFSÜCO LIA NATUREZA HUMANA
Em segundo lugar, o homem e distinto cie Deus. Os seres humanos têm um iní-
eio temporal, mas Deus é eterno, O Senhor não é o homem para que possa morrer.
As Escrituras destacam o contraste entre os atributos infinitos de Deus como
Criado! e a limitação finita do homem como criatura. Esta é uma consideração
importante que se deve ter em mente quando se define o ponto de vista bíblico
da natureza humana. A revelação divina global apresenta os seres humanos como
criaturas que dependem de Deus, mas são distintas dele (Is 45:11; 57:15; Jó 10:8-
10). Contudo, a despeito da ênfase na dependência do homem de Deus como
criatura, eíe permanece numa posição de relacionamento especial com o Criador.
"O caráter distinto de sua humanidade coloca-o à parte não só das outras criatu-
ras de Deus, mas também para o serviço amorável e grato a seu Criador1״.
■*L
A IMAGEM DE D e US
A característica distintiva da relação do homem com Deus é expressa
na declaração de sua criação a imagem de Deus. "Façamos o homem à nossa
imagem, conforme a nossa semelhança״ (Gn 1:26; cf. 5:1-3; 9:6). Tentativas
elaboradas têm sido feitas para definir o que a ״imagem de Deus״, segundo a
qual o homem foi criado, vem a ser.- Alguns afirmam tratar-se da semelhança
tísica entie Deus e o homem. 1 O problema com essa posição é que pressupõe que
Deus tem uma natureza corpórea semelhante á dos seres humanos. Tal idéia é
desmentida pela declaração de Cristo de que "Deus é Espírito” (Jo 4:24), o que
sugere que Ele não é limitado por espaço ou matéria, como nós. Ademais, os
termos bíblicos para o aspecto físico da natureza humana (bashat, suvks — carne,
corpo) nunca são aplicados a Deus.
Outros julgam que a imagem de Deus é o aspecto não-material da natureza
humana, ou seja, sua alma espiritual. Assim, R. Laird-Harris declara:
No mundo, só o homem é um ser espiritual, moral e racional. Ele possui uma alma
concedida por Deus e a inferência é que essa alma, sendo feita à imagem de Deus,
não se sujeita aos limites de tempo e espaço.4
Numa linha semelhante de pensamento, Calvino afirma: ״Não se pode
duvidar que o correspondente apropriado da imagem á a alma״, mas ele acres
centa que não há qualquer parte no homem, nem mesmo o seu corpo, que
não seja adornada com alguns raios de sua glória”.· Tal ponto de vista pres
supõe um dualismo entre o corpo e a alma que não tem respaldo no relato da
criação do Gênesis. O homem não recebeu uma alma de Deus; ele foi feno
uma alma vivente. Além disso, na historia da criação os animais também são
mencionados como tendo dentro de si uma alma vivente, contudo, não foram
criados à imagem de Deus.
Imortalidade ou R essurreição?
Alguns interpretam a imagem de Deus no homem como sendo a combina״
ção da masculinidade e feminilidade humanas.6 A base para essa interpretação é
primaria mente a proximidade da expressão “macho e fêmea os criou* com a de
claração “à imagem de Deusos criou״ (Gn 1:27). Incontestavelmente, há alguma
verdade teológica na noção de que a imagem de Deus é refletida na comunhão de
macho-fêmea como iguais.
,Mas o problema com essa interpretação é que êla faz
muito de tão pouco para reduzir a imagem de Deus exclusivamente à comunhão
macho-fêmea como iguais.
A interpretação da imagem de Deus como sendo a combinação da mascu
linidade e feminilidade humanas tem levado alguns a transformar Deus num ser
andrógino, metade macho e metade fêmea. Tal ponto de vista é estranho à Bíblia,
uma vez que Deus não carece de um correspondente feminino para completar
sua identidade. Um ato de Deus é muitas vezes comparado com o de uma mãe
compassiva (Is 49:15), mas a pessoa de Deus é revelada como a de nosso Pai, espe
cialmente por meio de Jesus Cristo.
I m agem c o m o ca pa c id a d e pa ra refletir D eus
Em nosso ponto de vista, a imagem de Deus é associada, não ao homem
como macho e fêmea, ou a uma alma imortal atribuída a nossa espécie, mas à ca
pacidade da humanidade em ser e fazer, num nível finito, o que Deus é e faz num
nível infinito. O relato da criação parece estar dizendo que ainda que o sol reine
no dia e a lua na noite, e os peixes reinem no mar, a humanidade reflete a imagem
de Deus tendo domínio sobre todos esses reinos (Gn 1:28-30).
No Novo Testamento, a imagem de Deus na humanidade nunca ê associada
à comunhão macho-fêmea, ou à semelhança física, ou uma alma não-material,
espiritual, mas com as capacidades morais e racionais: “E vos revestistes do novo
homem que se refaz para o pleno conhecimento, segundo a imagem daquele que
o criou” (Cl 3:10 cf. Ef 4:24)· Semeíhantemente, a conformidade com a imagem
de Cristo (Rm 8:29; ICo 15:49) é geralmente entendida em termos de justiça e
santidade. Nenhuma dessas qualidades ê possuída pelos animais, O que distingue
as pessoas dos animais é o fato de que a natureza humana de forma inerente tem
possibilidades semelhantes a Deus. Em virtude de ser criado à imagem de Deus, o
ser humano é capaz de refletir o caráter divino etn sua própria vida.
Ser criado à imagem de Deus significa que devemos ver-nos como essendal-
mente valiosos e ricamente investidos com significado, potencial e responsabilidades.
Significa que fomos criados para refletir a Deus em nossos pensamentos e ações. De
vemos ser e fazer numa escala finita o que Deus é e faz numa escala infinita.
A Bíblia nunca menciona a imortalidade em ligação com a imagem de Deus
no homem. A árvore da vida representava a imortalidade na comunhão com o
Ο ΡΟΝΤΟ DE VISTA BÍBLICO DA NATUREZA HUMANA
Criador, mas como resultado do pecado, Adão e Eva foram expulsos do jardim,
sendo assim privados de acessar a fonte de vida contínua na presença de Deus.
Por que devia a imagem ser encontrada na imortalidade mais do que o seria na
onisciência, onipotência ou onipresença? Nenhum desses outros atributos divinos
foi atribuído ao homem como parte da imagem de Deus, mesmo antes da queda.
Nada nas Escrituras sugere que o homem transmite a imagem de Deus por pos
suir atributos divinos, como a imortalidade. Não existem razões válidas para isolar
a imortalidade como o único atributo divino que se tenciona expressar pela frase
“imagem de Deus”. Ao contrário, as Escrituras negam isso, como veremos.
G ê n e s is 2 :7 : “ u m a a l m a v iv e n t e ״
A segunda importante declaração bíblica para entender a natureza huma
na se encontra em Gênesis 2:7. Não surpreende que este texto forme a base da
discussão concernente à natureza humana, uma vez que propicia o único relato
bíblico de como Deus criou o homem. O texto menciona: “Então formou Deus
o homem do pó da terra, e soprou-lhe nas narinas o fôlego de vida; e o homem
tornou-se uma alma vivente” (Gn 2:7).
Historicamente, este texto tem sido lido através das lentes do dualismo clás
sico. Tem-se presumido que o fôlego de vida soprado nas narinas do homem foi
simplesmente uma alma imaterial, imortal, que Deus implantou em seu corpo.
Assim, Gênesis 2:7 tem sido historicamente interpretado à base do dualismo· tra
dicional corpo-alma.
O que tem conduzido a essa interpretação errônea é o fato de que a palavra
hebraica nephesh} traduzida por “alma” em Gênesis 2:7, tem sido entendida con
forme a definição-padrão do dicionário Webster para alma: “A essência imaterial,
princípio animador, ou causa atuante de uma vida individual”. Ou, “o princípio
espiritual incorporado nos seres humanos”.7 Essa definição-padrão reflete o ponto
de vista platônico da alma-psychê como sendo uma essência imaterial, imortal que
reside no corpo, ainda que não sendo parte dele.
Esse ponto de vista prevalecente leva as pessoas a lerem as referências à
alma-nep/iesTi no Antigo Testamento à luz do dualismo platônico, ao invés do
holismo bíblico. Como Claude Tresmontant expressou: “ao aplicar à palavra he
braica nephesh [alma] às características da pS3?chê [alma] platônica, (...) deixamos
que nos escape o real sentido de nephesh [alma] e, além disso, somos deixados com
inumeráveis pseudo-problemas”8.
As pessoas que lêem as referências do Antigo Testamento a nephesh (que na
Versão Kíng James recebe a tradução de “alma” 472 vezes) com uma mentalidade
dualística terão grande dificuldade em entender o ponto de vista holístico da na
tureza humana. Segundo esse ponto de vista, o corpo e a alma são a mesma pessoa
Im ortalidade o u R essurreição7
vista de diferentes perspectivas. Essa pessoas enfrentarão problemas em aceitar o
significado bíblico de “alma” como o princípio que anima tanto a vida humana
quanto a animal Além disso, estarão em apuros para explicar aquelas passagens
que falam de uma pessoa morta como uma alma-nephesh morta (Lv 19:28; 21:1! l l i_
22:4; Nm 5:2; 6:6, 11; 9:6, 7, 10; 19:11, 13: Ag 2:13), Para elas, é inconcebível
que uma alma imortal possa morrer com o corpo.
O SENTIDO DE “ALMA VIVENTE״
A prevalecente noção de que a alma humana é imortal tem levado mui
tos a interpretarem a declaração “e o homem tornou-se uma alma vivente” (Gn
2:7) como significando “o homem obteve uma alma vivente”. Essa interpre
tação tem sido desafiada por numerosos eruditos que são sensíveis à confusão
relativa à diferença entre o conceito dualístico grego e a concepção holística
bíblica da natureza humana.
Aubrey Johnson, por exemplo, explica que nephesh^ahna em Gênesis 2:7 de
nota o homem integral, com ênfase sobre sua consciência e vitalidade.9 Seme
lhantemente, Johannes Pedersen, falando da criação do homem em seu clássico
estudo Israel, escreve:
34 A base de sua essência era a ffágil substância corpórea, mas pelo sopro de Deus foi
transformada e tomou-se uma nephesh, uma alma. Não é dito que o homem foi suprido
com uma nephesh, e por isso a relação entre corpo e alma é completamente diferente
desse ponto de vista. Tal como ele é, o homem em sua essência total é uma alma.10
Pedersen prossegue fazendo notar que
no Antigo Testamento somos constantemente confrontados com o fato de que o ho
mem, como tal, é uma alma. Abraão partiu para Canaã com sua propriedade e todas
as almas que lhe pertenciam (Gn 12:51, e quando Abraão conseguiu os despojos em
sua expedição guerreira contra os grandes reis, o rei de Sodoma exortou-o a dar-lhe
as almas e conservar os bens (Gn 14:2 lh Setenta almas da casa de Jacó foram para
o Egito (Gn 46:27: Êx 1:5). Toda vez que um censo é levantado, a pergunta que
surge sempre é: quantas almas há? Nesse e em outros numerosos lugares podemos
substituir pessoas por almas.11
Comentando Gênesis 2:7, Hans Walter Wolff pergunta:
O que nephesh [alma] significa aqui? Certamente não alma [no sentido dualístico
tradicional]. Nephesh foi designado para ser visto junto com a forma completa do
homem, e especíalmente com sua respiração; além disso o homem não tem nephesh
[alma], ele é nephesh, ele vive como nephesh.n
LJ PONTO Oh VISTA BÍBLICO DA NATUREZA HUMANA
O fato de que a alma na Bíblia se apresenta como a pessoa viva integral é
reconhecido mesmo pelo erudito católico Dom Wulstan Mork, que se expressa
em termos semelhantes;
É nephesh [alma] que dá vida ao bashar [corpo], mas não como uma substância
,distiiv
ta. Adão não temnephesh [alma]; ele é nephesh [alma], tal como ele é bashar [corpo].
O corpo, longe de ser dividido de seu princípio vital, é a nephesh [alma] visível13
De uma perspectiva bíblica, o corpo e a alma não são duas substâncias sepa
radas (uma mortal e outra imortal) que residem juntas dentro do ser humano, mas
duas características da mesma pessoa. Johannes Pedersen admiravelmente resume
este ponto com uma declaração que tem se tomado proverbial: “O corpo é a alma
em sua forma exterior14״. O mesmo ponto de vista é expresso por H. Wheeler Ro-
binson numa declaração igualmente famosa: “A idéia hebraica de personalidade é
a de um corpo vital, e não (como para os gregos) a de uma alma encarnada”15;
Em suma, podemos dizer que a expressão “o homem tomou-se uma alma
vivente — nephesh hayyah” não significa que por ocasião da criação seu corpo foi
dotado de uma alma imortal, uma entidade separada, distinta do corpo. Em vez
disso, significa que como resultado do divino soprar do “fôlego de vida" no cor
po inanimado, o homem tomou-se um ser vivente, que respira, nada maís, nada
menos. O coração começou a bater, o sangue a circular, o cérebro a pensar, sendo
todos os sinais vitais ativados. Declarado em termos simples, “uma alma vivente"
significa “um ser vivo”.
As implicações práticas dessa definição são destacadas numa maneira suges
tiva por Dom Wulstan Monk:
O homem como nephesh [alma] significa que é sua nephesh [alma] que vai jantar, que
apanha um bife e o come. Quando vejo outra pessoa, o que vejo não é meramente
o seu corpo, mas sua nephesh [alma] visível, porque, nos termos de Gênesis 2:7, isso
é o que constitui o homem - uma nephesh vivente. Os olhos têm sido chamados “a
janela da alma”. Isso é realmente uma dicotomia. Os olhos, enquanto pertencerem
à pessoa viva, são em si próprios a revelação da alma.10
O S ANIMAIS COMO ״ ALMAS VIVENTES״
O sentido de “alma vivente” como simplesmente “ser vivente” é apoiado
pelo emprego da mesma frase “alma vivente - nephesh hayyah" para os animais.
Em muitas traduções bíblicas, como é o caso da Versão Kíng James, esta frase
aparece pela primeira vez em Gênesis 2:7, quando se descreve a criação de Adão.
Mas devemos observar que esta não é a primeira ocasião em que tal frase surge na
Bíblia hebraica. Também a encontramos em Gênesis 1:20. 2L 24 e 30. Em todos
Imortalidade ou Ressurreição?
esses quatro versos “alma vivente - nephesh hayyah” foi traduzida como “criaturas
viventes” em referência aos animais, mas os tradutores da maioria das versões em
inglês escolheram traduzir “criatura vivente” em lugar de “alma vivente”. O mes
mo é verdade com relação a outras passagens após Gênesis 2:7, onde os animais
são referidos como “criaturas viventes” em lugar de “almas viventes” (Gn 2:19,
9:10: 12 e 15■ 16: Lv 11:46).
Por que os tradutores da maioria das versões em inglês traduzem a mesma
frase hebraica nephesh hayyah como “alma vivente” nas referências a seres huma
nos, e “criaturas viventes” quando se referem aos animais? A razão é simples: es
tão condicionados pela crença de que os seres humanos têm uma alma imaterial,
imortal, o que não corresponderia aos animais. Em consequência, empregam a
palavra “alma” para homem, e “criatura” para animais ao traduzirem o mesmo ter
mo hebraico nephesh. Norman Snaith condena essa interpretação como “bastante
repreensível”, e declara ser
uma grave reflexão pot parte dos revisores !tradutores da Versão Autorizada, em
inglês] que conservaram essa enganosa diferença na tradução. (...) A frase he
braica devia ser traduzida exatameme do mesmo modo em ambos os casos. Agir
diferente disso é enganar todos aqueles que não leem o hebraico. Não há descul
pas nem. defesa apropriada. A tendência de ler 1alma imortal’ no sentido hebraico
36 nephesh e traduzi-la de acordo com essa interpretação é muito antiga, e pode ser
vista na Septuaginta...17
Basii Atkinson, um ex-bibliotecário da Universidade Cambridge, oferece a
mesma explicação.
Nossos tradutores [da Versão Autorizada] ocultaram este fato de nós, presumivel
mente porque estavam tão presos a noções teológicas atuais do significado da pa
lavra *alma5 que ousaram não traduzi-la por ela ser uma palavra hebraica que faz
referência a animais, embora o tenham feito na margem [da Versão Autorizada]
dos versos 20 e 30. Nesses versos, encontramos “criaturas que se movem, ou alma
vivente” (hebraico - v. 20); “toda alma vivente (hebraico nephesh) que se move” (v.
21); “produza a terra almas viventes (hebraico nephesh) segundo sua espécie” (v. 24);
e também “e a toda besta da terra, e a toda ave do ar, e a todos os répteis da terra,
nos quais há alma vivente” (hebraico nephesh ־־ v. 30).18
O emprego de nephesh-alma nessas passagens em referência a toda sorte
de animais revela claramente que nephesh não é uma alma imortal dada ao ho
mem, mas o princípio animador de vida ou o “fôlego de vida”, presente tanto
no homem quanto no animal. Ambos são caracterizados como almas, em con
traste com as plantas. A razão por que as plantas não são almas é possivelmente
porque não possuem órgãos que lhes permitam respirar, sentir dor e alegria, ou
Ο ΡΟΝΤΟ DE VISTA BÍBLICO DA NATUREZA HUMANA
mover-se em busca de alimento. O que distingue a alma humana da dos animais
é o fato de que os seres humanos foram criados à imagem de Deus, isto é, com
possibilidades semelhantes às de Deus, não disponíveis aos animais.
O ponto importante a se notar nestas alturas é que tanto o homem quanto
o animal sdo almas. Como Atkínson assinala,
eles [o homem e os animais] não são criaturas bipartites, que consistem de uma
alma e um corpo que podem ser separados e prosseguir vivendo. Suas almas são a
totalidade deles e compreende seus corpos, bem como suas faculdades mentais. São
referidos como lenào alma, ou seja, sendo conscientes, para distinguidos dos objetos
inanimados que não têm vida. Do mesmo modo, podemos dizer que um homem ou
um animal é um ser consciente e tem um ser consciente.1̂
O termo alma-nephesh é empregado tanto para as pessoas quanto para os
animais porque ambos são seres conscientes. Ambos compartilham o mesmo
princípio animador de vida, ou “fôlego de vida״.
A lma e s a n g u e
Adicionalmente às quatro passagens que consideramos em Gênesis 1, há
19 outras no Antigo Testamento onde a palavra nephesh é aplicada aos animais.
Desejamos considerar duas delas porque ajudam a esclarecer adicíonalmente o
sentido de ״alma vivente״ em Gênesis 2:7. Essas passagens são de especial inte
resse porque associam nephesh com sangue. Em Levítico 17:11, lemos: “Porque
a vida da carne está no sangue”. “Vida” é tradução do hebraico nephesh. Desse
nodo, a passagem menciona: “A alma da carne está no sangue”.
No verso 14 do mesmo capítulo lemos: “Portanto a vida de toda carne é o seu
sangue; por isso tenho dito aos filhos de Israel: Não comereis o sangue de nenhuma
carne, porque a vida de toda carne é o seu sangue”. Aqui a palavra “vida” é empre
gada em cada caso para traduzir o hebraico nephesh, então o texto devia ser real-
Mente lido assim: “Pois a alma de cada criatura está no seu sangue...” {ver também
Dc 12:23). Essa frase “toda criatura״ sugere que as referências a sangue aplicam-se
Canto ao homem quanto aos animais. Deste modo, como Atkínson assinala, “temos
aqui um lampejo muito importante revelado quanto à essência da natureza huma
na. A alma e o sangue são idênticos”20.
A razão por que a alma -nephesh é igualada ao sangue presumivelmente é
porque a vitalidade da vida-nephesh reside no sangue. No sistema sacrifical, o
sangue expiava pelo pecado por causa de sua associação com nephesh-vida. A
■acança sacrifical de um animal significava que uma nephesh-vida fora sacrifi
cada para expiar pelos pecados de outra nephesh-vida.
Im o r ta lid a d e o u R essurreição?
Tory Hoff de forma muito apropriada observa que
a relação hebraica entre nephesh [vida] e sangue revela que nephesh [vida] transmite
um aspecto
,“sagrado” para a vida humana. Nephesh [vida] foi uma obra de Deus (Gn
2:7)t estava no cuidado de Deus (Pv 24:12), achava-se em suas mãos (Jó 12:10), e a
Ele pertencia (Ez 18:4, 20). Os hebreus criam que eram proibidos de se intrometer
ou interferir na existência como nephesh [vida] uma ver que era uma existência
recebida além do homem. (...) Os hebreus eram proibidos de comer carne ainda
contendo sangue porque o ato interferia com nephesh [vida] e, portanto, tornava-se
ofensivo a Deus. A equação entre sangue e nephesh [vida) significava que consumir
sangue era uma forma de assassinato. Um estava sustendo a própria vida [nephesh]
de uma pessoa com o nephesh [vida] sagrado de outra.21
A discussão precedente da associação de nephesfi-alma com animais e sangue
tem servido para esclarecer adicionalmente o significado de “alma vivente” (Gn
2:7) como aplicado a Adão. Temos visto que esta frase não significa que, por ocasião
da criação, Deus dotou o corpo humano de uma alma imortal, mas simplesmente
que o homem tornou-se um ser vivente em resultado do sopro divino dentro do cor
po inanimado. Esta conclusão é apoiada pelo fato de que o termo nephesh é também
empregado para descrever animais e sangue. O último igualava-se a nephesh-alma
porque era visto como manifestação tangível da vitalidade da vida. Antes de explo
rar adicionalmente o significado de nephesh-alma no Antigo Testamento, precisa
mos considerar o significado de “fôlego de vida” em Gênesis 2:7.
O FÔLEGO DE VIDA j T, v׳c *0 ־
O que é o “fôlego [neshamah] de vida” que Deus soprou nas narinas de Adão?
Alguns presumem que o ,,fôlego de vida” é a alma imortal que Deus implantou no
corpo material de Adão. Essa interpretação não pode ser legitimamente apoiada
pelo significado e emprego bíblico de “fôlego de vida” porque em parte alguma da
Bíblia é o “fôlego de vida” identificado com uma alma imortal.
Na Escritura, o “fôlego [neshamah] de vida” é o poder transmissor de vida
associado ao sopro de Deus. Assim, lemos em j ó 33:4, “O Espírito de Deus me fez;
e o sopro [ruach] do Todo-Poderoso me dá vida”. O paralelismo entre “o Espírito
de Deus” e o “sopro do Todo-Poderoso” sugere que os dois são usados intercam-
biavelmente porque ambos referem-se ao dom da vida concedido por Deus à suas
criaturas. Outro claro exemplo se acha em Jsaías 42:5: “Assim diz Deus, o Senhor
que criou os céus e os estendeu (...) que dá fôlego (neshamah] de vida ao povo que
nela está, e o espírito [ruach] aos que andam nela”. Aqui, novamente, o paralelis
mo demonstra que o fôlego e o espírito denotam o mesmo princípio animador de
vida que Deus concede à suas criaturas.
W I W I N ׳.—1 1 V_״ V I J J Í ; u i U L I V /V _ ^ V V I׳_1 N ; I I U I U j L · / 1 L 1 U
A imagem do “fôlego de vida” descreve de forma sugestiva o dom divino da
vida a suas criaturas, porque o fôlego é um sinal vital da existência. Uma pessoa
que não mais respira está morta. Assim, não é de surpreender que nas Escrituras o
Espírito de Deus que concede vida seja caracterizado como o “fôlego de vida". Afi
nal de contas, respirar é uma manifestação tangível de vida. Jó declara: “Enquanto
em mim estiver a minha vida [o fôlego-neshamah, VKJ], e o sopro [ruach] de Deus
nos meus narizes, nunca os meus lábios falarão injustiça” (Jó 27: 3, 4)» Aqui, o “fô
lego” humano e o divino “sopro” [“espírito", VKJ] são igualados, porque respirar é
visto como uma manifestação do poder sustentador do Espírito de Deus.
A posse do “fôlego de vida” não confere em si mesmo imortalidade, por
que, por ocasião da morte, “o fôlego de vida” retoma para Deus. Ao descrever a
morte, Jó declara: “Se Deus (...) para si recolhesse o seu espírito [ruach] > e o seu
sopro [ruach] t toda carne juntamente expiraria, e o homem voltaria para o pó”
(ló 34:14, 15). A mesma verdade é expressa em JBclcsiststes_lZi7: “O pó volte à
terra, como o era, e o espírito volte a Deus que o deu”. A respeito do dilúvio,
lemos: “Pereceu toda a carne que se movia sobre a Terra (...) Tudo o que tinha
fôlego de vida [neshamah] em suas narinas, tudo o que havia em terra seca,
morreu” (Gn 7:21 e 22).
O fato de que a morte é caracterizada como a retirada do fôlego de vida demons
tra que esse “fôlego de vida” não é um espírito ou alma imortal que Deus concede a
suas criaturas, mas o dom da vida que os seres humanos possuem pelo decurso de sua
existência terrena. Enquanto o “fôlego de vida” ou espírito permanecerem, os seres
humanos são “almas viventes”. Mas quando o fôlego parte tomam-se almas mortas.
A ligação entre o “fôlego de vida” e a “alma vivente” torna-se clara quando
nos lembramos que, como assinala Atkinson,
a alma do homem está era seu sangue e, de fato, o seu sangue é a sua alma. Assim ele
é mantido em vida como uma alma viva pela inalação do oxigênio extraído do ar, e a
ciência médica hoje sabe, logicamente, bastante sobre a ligação entre essa absorção
de oxigênio e o sangue,22
A cessação da respiração resulta na morte da alma, porque o sangue, que é
igualado à alma, não mais recebe o oxigênio que é tão vital para a vida. Isso expli
ca por que a Bíblia se refere 13 vezes à morte humana como sendo morte da alma
lLv 19:28; 21:1, 11; 22:4; Nm 5:2; 6:6.11; 9:6, 7, 10; 19:11. 13; Ag 2:13).
A luz da discussão precedente, concluímos que o homem “tornou-se alma
vivente” (VKJ) por ocasião da criação, não através da implantação de uma alma
imaterial, imortal em seu corpo material, mortal, mas mediante o princípio ani
mador de vida (“fôlego de vida”) a ele concedido pelo próprio Deus. No relato da
criação, a “alma vivente” denota o princípio de vida ou o poder que anima o corpo
humano e revela-se na forma de vida consciente.
Im o r ta lid a d e o u R e ssu r r e iç ã o ?
A NATUREZA HUMANA COMO ALMA
Até aqui, temos examinado o ponto de vista veterotestamentário da naoiTeza
humana à luz da criação do homem à imagem de Deus como uma alma vivente. Te״
mos descoberto que os dois textos fundamentais da criação humana, Gênesis 1:26,
27 e 2 :7 , não dão lugar a uma interpretação dualfetica da natureza humana com um
corpo mortal e uma alma imortal. Pelo contrário, o corpo, o fôlego de vida e a alma
estão presentes na criação do homem, não como entidades separadas, mas como
características da mesma pesso a^O corpo é o homem como um ser çQnçrçtoia alma
é o homem como um indivíduo vivo; o fôlego de vida ou espírito é o homem tendo^
sua fonte em Deus.)Para testar a validade dessa conclusão inicial, agora examina״
remos mais detidamente o emprego mais amplo no Antigo Testamento de quatro
aspectos-chave da natureza humana: alma, corpo, coração e espírito.
Nosso estudo inicial do significado de nephesh-alma no contexto da criação
demonstrou que a palavra é empregada para designar o princípio animador da
vida como presente tanto nos seres humanos quanto nos animais. Neste pon
to, desejamos explorar o emprego mais amplo de nepfiesh no Antigo Testamento.
Uma vez que nephesJi ocorre no Antigo Testamento 754 vezes e é traduzido em 45
maneiras diferentes,21 nosso enfoque recairá sobre os três usos principais da pala
vra que se relaciona diretamente com o objeto de nossa investigação.
A l m a c o m o u m a p e s s o a n e c e s s it a d a
Em seu livro de maior autoridade e atualidade A?iíhropolog} of the Old Testa*
ment [Antropologia do Antigo Testamento], virtualmente indisputável entre eru
ditos de várias confissões teológicas, Hans Walter Wolff intitula o capítulo sobre a
alma como “nephesh-homem necessitado”.24 A razão para esta caracterização de
nephesh como “homem necessitado” toma-se evidente quando se leem os muitos
textos que retratam nephesh-alma em situações perigosas em proporções de vida e
morte.
Sendo que Deus foi quem fez o homem “uma alma vivente” e que sustém
a alma humana, os hebreus quando em perigo apelavam a Deus para livrar suas
almas, ou seja, suas vidas. Davi orou: “livra do ímpio a minha alma [nephesh]”;
“por amor da tua justiça, tira da tribulação
,a minha alma [nephesh]” (S! 143:11).
O Senhor merece ser louvado, “pois livrou a alma [nephesh] do necessitado da
mão dos malfeitores” (Jr 20:13).
As pessoas tinham grande temor por suas almas [nephesh] (Js 9:24) quando
outros estavam buscando suas almas [nephesh] (Êx 4:19; ISm 23:15). Eles tiveram
que fugir por suas almas [nephesh] (2Rs 7:7) ou defender suas almas [nephesh] (Et
8:1 1 ); se não o fizessem, suas almas [nephesh] seriam totalmente destruídas (Js
10:28, 30, 32, 35,37 e 39). “A alma que pecar, essa morrerá” (Ez 18:4 e 20). Raabe
Ο ΡΟΝΤΟ DE VISTA BÍBLICO DA NATUREZA HUMANA
pediu aos doís espias israelitas que salvassem sua família falando em termos de “li-
vrareis as nossas vidas [,almas’, VKJ] da morte” Os 2:13). Nesses casos, é evidente
que a alma que estava em perigo e necessitava ser livrada era a vida do indivíduo.
A alma experimentava perigo não só dos inimigos, mas também da falta de
alimento. Ao lamentar o estado de Jerusalém, Jeremias declarou; “Todo o povo
anda gemendo e à procura de pão; deram eles as suas coisas mais estimadas a
troco de mantimento para restaurar as forças [alma-nephesh, VKJ] (Lm 1:11). Os
israelitas resmungavam no deserto porque não tinham mais carne como antes no
Egito. ״Agora, porém, seca-se a nossa alma [nephesh], e nenhuma coisa vemos
senão este maná” (Nm 11:6).
O jejuar tinha implicações para a alma porque interrompia a nutrição de
que carecia a alma. No dia da expiação, os israelitas eram ordenados: “afligireis as
vossas almas” (Lv 16:29) pelo jejum. Eles se abstinham de comida para demons
trar que suas almas dependiam de Deus tanto para a nutrição física quanto para a
salvação espiritual. Tory7 Hoff escreve:
Muito apropriadamente, eles [os israelitas] eram solicitados a jejuar no dia da ex
piação porque suas almas é que eram expiadas (...) mediante o derramamento de
sangue (de uma alma inocente) e era o Deus providencial que sustinha a alma, a
despeito do pecado da alma.25
O tema do perigo e libertação associado com a alma [nep/ies/i] permite-nos ver
que a alma no Antigo Testamento era vista como a condição incerta e insegura da
vida que às vezes era ameaçada de morte^e não como um componente imortal da
natureza humana. Essas situações que envolviam intenso perigo e libertação recor
davam aos israelitas que eles eram almas [nephesh] necessitadas, pessoas com vida
cuja existência dependia constantemente de Deus para proteção e livramento.
A ALMA COMO SEDE DAS EMOÇÕES
Sendo o princípio animador da vida humana, a alma também atuava como
o centro de atividades emocionais. Ao falar da sunamita, 2 Reis 4:27 diz: “A sua
alma [?lep/iesh] está em amargura”. Davi clamou ao Senhor buscando livramento
de seus inimigos dizendo: “A minha alma [nephes/i] está profundamente perturba
da. (...) Volta-te, Senhor, e livra a minha alma [nep/iesJi]” (Sl 6:3, 4).
Enquanto as pessoas estavam esperando pela libertação de Deus, suas almas
perdiam vitalidade. Tory Hoff nota que
pelo fato de que o salmista frequentemente escrevia em face de sua experiência
[de perigo], os Salmos incluem sentenças tais como “desfalecia neles a alma“ (SI
107:5), “a minha alma de tristeza verte lágrimas” (SI 119:28), “desfalece-me a
alma, aguardando a tua salvação” (SI 119:81), “minha alma suspira e desfalece
Im o r t a l id a d e o u R e ssu r r e iç ã o ?
pelos átrios do Senhor” (Sl 84:2), e “no meio destas angústias, desfalecia-lhes
a alma” (Sl 107:26). Jó indaga: “Até quando afligireis a minha alma (...) ?” (Jó
19:2). Também era a alma que esperaria por livramento. “Somente em Deus, ó
minha alma, espera silenciosa" (Sl 62:1). “Aguarda o Senhor, a minha alma o
aguarda” (Sl 130:5). Sendo que o hebreu sabia que todo o livramento procedia
de Deus, sua alma tomaria “refúgio” em Deus (Sl 57:1) e “tem sede de Deus”
(Sl 42:2; 63:1). Uma vez que o perigo e a tensão tinham passado e a natureza
precária da situação houvesse findado, a alma louvaria a Deus pela libertação
recebida. “Gloriar-se-á no Senhor a minha alma1’ (Sl 34:2). “E minha alma se
regozijará no Senhor, e se deleitará na sua salvação״ (Sl 35:9).26
Estas passagens que falam da alma como sede da emoção são interpretadas
por alguns dualistas como apoiando a noção da alma como uma entidade imate
rial ligada ao corpo e responsável pela vida emocional e intelectual do indivíduo.
Tbry Hofl explica que o problema com essa interpretação é que “a alma é a ‘sede
da emoção’ não mais do que qualquer outro termo antropológico hebraico”27.
Veremos que a alma é somente um centro de emoções, porque o corpo,
o coração, os rins e outras partes do corpo também funcionam como centros
emocionais. Do ponto de vista holístico bíblico da natureza humana, uma parte
do corpo pode muitas vezes representar o todo.
Wolff corretamente observa que o conteúdo emocional da alma é igualado
42 ao eu da pessoa e não é uma entidade independente. Ele cita, como exemplo, o
Salmo 42:5, 1 1 e 43:5 em que se encontra o mesmo cântico de lamento e auto-
exortação: “Por que estás abatida, ó minha alma? Por que te perturbas dentro em
mim? Espera em Deus, pois ainda o louvarei”. “Aqui״, Wolff escreve, “nephesh
[alma] é o eu da vida necessitada, sedenta de desejo”.28 Nada há nestas passagens
que sugira que a alma é uma parte imaterial da natureza humana que está equipa
da com personalidade e consciência e é capaz de sobreviver à morte. Notaremos
que a alma morre quando o corpo morre.
^ A ALMA COMO SEDE DA PERSONALIDADE
A alma [nephesh] é vista no Antigo Testamento não somente como a sede
das emoções, mas também como a sede da personalidade. A alma é a pessoa
como um indivíduo responsável Em Miquéias 6:7 lemos: “Darei o meu primo
gênito pela minha transgressão? O fruto do meu corpo pelo pecado da minha
alma [nephesh]?” A palavra hebraica traduzida aqui por “corpo” é beten, que
significa barriga ou ventre. O contraste aqui não é entre corpo e alma. Ao co
mentar este texto, Dom Wulstan Mork escreve;
O sentido não é que a alma seja a causa humana do pecado, com o corpo como o instru
mento da alma. Antes, a nepteh, a pessoa viva integral, é a causa do pecado. Portanto,
neste verso, a responsabilidade pelo pecado é atribuída à nephesh como à pessoa.29
Ο ΡΟΝΤΟ DE VISTA BÍBLICO DA NATUREZA HUMANA
Encontramos a mesma idéia em vários textos que discutem o pecado e a cul
pa, “Quando alguém [“uma alma-nephésh”, VKJ] pecar por ignorância” (Lv 4:2);
‘Quando alguém [“uma alma-ncphesh”, VKJ] pecar nisto (.,) levará a sua íniqüida-
de” (Lv 5;1); “Mas a pessoa ralma-nephesh, VKJ] que fizer alguma coisa atrevida
mente (...) tal pessoa [“alma-nephesh”, VKJ] será eliminada do meio do seu povo”
(Nm 15:30). “Eis que todas as almas [nephesh] são minhas; (...) a alma [nephesh]
que pecar, essa morrerá” (Ez 18:4). E evidente que em textos como estes a alma é a
pessoa responsável que pensa, deseja e deve responder por sua conduta.
Qualquer atividade física era empreendida pela alma porque tal atividade pre
sumia uma pessoa vivente, pensante e ativa, “O hebraico não dividia e atribuía ati
vidades humanas. Qualquer ato era da nephesh completa em ação, portanto, da pes
soa integral”.30 Como adequadamente expressa W D. Stacey, “nephesh sofria, tinha
fome e pensava, porque cada uma dessas funções requeria a personalidade integral
para realizá-la, e a distinção entre o emocional, físico e mental não era feita”31.
No Antigo Testamento a alma e o corpo são duas manifestações da mesma
pessoa. A alma inclui e presume o corpo. Mork escreve:
De fato, os antigos hebreus não podíam conceber uma sem a outra. Aqui não
havia a dicotomia grega de alma e corpo, de duas substâncias opostas, mas uma
unidade, homem, que é bashar [corpo] de um aspecto e nephesh [alma] de outro.
Bdshfír, pois, é a realidade concreta da existência humana, nephesh é a personali
dade da existência humana.32
A ALMA E A MORTE
A sobrevivência da alma no Antigo Testamento liga-se à sobrevivência do
corpo, visto que o corpo é uma manifestação
,exterior da alma. Isso explica por que
a morte de uma pessoa é muitas vezes descrita como a morte da alma. Johannes
Pedersen escreve:
Quando ocorre a morte, então é a alma que se priva de vida. A morte não pode
atacar o corpo ou quaisquer outras partes da alma sem afetar a inteireza da alma.
Logo, também é dito sobre “matar uma alma” ou “ferir uma alma” (Nm 31:19;
>35^4,30; Js 20:3, 9); pode também ser empregado para “ferir alguém com respeito
aalma”, isto é, ferir alguém de modo que a alma seja morta (Gn 37:21; Dt 19:6,
11» Jr 40:14, 15). Não pode haver dúvida de que é a alma que morre, e todas as
teorias que tentam negar este fato são falsas. E deliberadamente dito tanto que a
,alma morre (Jz 16:30; Nm 23:10), quanto que é destruída ou consumida (Ez 22:25 ־־
27), e que é extinta (Jó 11:20).33
Leitores da Bíblia em inglês [ou português] podem questionar a validade da
declaração de Pedersen de que a alma morre, porque a palavra “alma” não ocorre
nos textos que ele cita. Por exemplo, ao falar das cidades de refúgio, Números
Im ortalidade o u R essurreição?
35:15 traz: “Para que nelas se acolha aquele que matar alguém [nephesh] invo
luntariamente״. Uma vez que a palavra “alma-nephesh” não ocorre na maioria das
traduções das Bíblias vernáculas, alguns podem alegar que o texto está falando de
matar o corpo e não a alma. A verdade, porém, é que nephesh é encontrada no
hebraico, mas os tradutores geralmente preferiram interpretar por “pessoa”, presu
mivelmente por causa de crerem que a alma é imortal e não pode ser morra.
Em alguns casos, os tradutores interpretaram nephes/i-alma com pronomes
pessoais. Leitores das versões vernáculas não têm meios de saber que os prono
mes apresentam-se como a alma-nephes/i. Por exemplo, um dos textos citados por
Pedersen é Deuteronomio 19:11, que na Versão Almeida Revista e Atualizada
(edição de 1969) assim menciona: “Mas, havendo alguém que aborrece a seu
próximo, e lhe arma ciladas, e se levanta contra ele, e o fere de golpe mortal, e se
acolhe a uma destas cidades..." A frase “o fere de golpe mortal” no hebraico se lê
“fere a alma-nepfresh mortalmente”. Pedersen cita os textos da Bíblia hebraica e
não das traduções vernáculas. Assim, sua declaração de que ״a alma morre” refle
te com precisão o que o texto hebraico transmite. Ademais, há textos mesmo na
versão vernácula que claramente falam da morte da alma, Por exemplo, Ezequiel
18:20 diz: “A alma que pecar, essa morrerá” (ver também 18:4)·
A morte é vista no Antigo Testamento como o esvaziamento da alma de
toda a sua vitalidade e força. “Ele derramou a sua alma na morte” (Is 53:12). “Ele
derramou” ê versão do hebraico arah que significa “esvaziar, desnudar, ou deixar
descoberto”. Isso significa que o Servo Sofredor esvaziou-se de toda a vitalidade e
força da alma. Na morte, a alma não mais funciona como o princípio animador da
vida, mas descansa na sepultura.
“A morte”, escreve Pedersen, “é uma alma destituída de vigor. Portanto, os
mortos são chamados fos fracos1 (rephaim). ‘Como nós, estás fraco’ é a sauda
ção com que os rei caído dos babilônios é recebido no domínio dos mortos (Is
14: 1o)”.34 O corpo morto é ainda uma alma, mas uma alma sem vida. Os nazireus
não tinham permissão de contaminar-se por chegar perto “de um cadáver”. Do
mesmo modo, os sacerdotes não deviam contaminar-se aproximando-se das almas
mortas de seus parentes (Lv 21:1, 11; Nm 5:2; 9:6, 7, 10).
A sorte da alma está ligada à sorte do corpo. Sobre o episódio em que
]osué conquistou as várias cidades além do Jordão, nos é dito repetidamente
que “destruiu-os totalmente, e a todos os que nela estavam” [“destruiu toda
alma-neptash”, VKJ] (Is 10:28, 30, 31, 34, 36, 38). A destruição do corpo é vista
como a destruição da alma. “Na Bíblia”, escreve Edmund Jacob, “nephesh refere-
se somente ao cadáver antes de sua dissolução iinal e enquanto tem aspectos
distinguíveis".35 Quando o corpo é destruído e consumido de modo que seus
aspectos não mais sejam reconhecidos, então a alma não mais existe, porque
“o corpo é a alma em sua forma exterior1’36. Por outro lado, quando o corpo é
Ο ΡΟΝΤΟ DE VISTA BÍBLICO DA NATUREZA HUMANA
posto a descansar na sepultura com os pais, a alma está também em repouso e
jaz imperturbável (Gn 15; 15; 25:8; ]z 8 :2 1 ; lC r 29:28).
A visão do Antigo Testamento, ao considerar a alma como cessando de fun
cionar por ocasião da morte como o princípio animador da vida do corpo, suscita
algumas questões interessantes com respeito à declaração de Jesus: ״Não temais
os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei antes aquele que pode
fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo” (Mt 10:28). Este texto parece
sugerir que a morte do corpo não acarreta necessariamente a morte da alma. Ele é
examinado no próximo capítulo que trata do ponto de vista do Novo Testamento
com respeito à natureza humana.
A PARTIDA DA ALMA
Adicionalmente às passagens que acabamos de considerar, em que a alma-
nephesh associa-se à morte, pelo menos dois textos merecem especial consideração
porque falam da partida e retorno da alma. O primeiro é Gênesis 35:18, que fala
que a alma de Raquel saía-lhe ao morrer, e a segunda é 1 Reis 17:21, 22, que fala
da alma do filho da viúva que lhe retornava. Estes dois textos são utilizados para
apoiar o ponto de vista de que na morte a alma deixa o corpo e retorna ao corpo
por ocasião da ressurreição.
Em seu livro Derzth and the Afterlife [A morte e o além túmulo], Robert A.
Morey apela a esses dois textos para apoiar sua crença na sobrevivência da alma
diante da morte do corpo. Ele escreve:
Se os autores das Escrituras não cressem que a alma deixou o corpo por ocasião da
morte e retomaria ao corpo quando da ressurreição, não teriam empregado tal frase
ologia [a partida e retomo da alma]. A maneira de expressão deles revela que criam
que o homem por fim sobrevivia à morte do corpo.37
Pode tal conclusão ser derivada legitimamente desses dois textos/ Examine
mos mais detidamente cada um deles. Ao descrever o parto de Raquel, Gênesis
35:18 declara: “Ao sair-lhe a alma (porque morreu), deu-lhe o nome de Benoni;
mas seu pai lhe chamou Benjamim”. Interpretar a sentença “sair-lhe a alma” como
significando que a alma imortal de Raquel estava deixando seu corpo enquanto
ela morria contraria o ensino coerente do Antigo Testamento de que a alma morre
com o corpo. Como Hans Walter Wolfí corretamente assinala,
não devemos deixar de observar que a nephesh [alma] nunca recebe um sentido de
um indestrutível núcleo da existência, em contraste com a vida física, e mesmo capaz
de viver quando eliminada dessa vida. Quando ocorre uma menção ao termo “sair”
(Gn 35:18) da nephes/i de um homem, ou de seu “retomo” (Lm 1:11), a idéia básica é
a noção concreta da cessação e restauração da respiração.58
Im ortalidade o u R essurreição?
A sentença “sair-lhe a alma” muito provavelmente significa que “sua respira
ção estava cessando״, ou, poderíamos dizer, ela estava dando o seu último suspiro.
É importante observar que o substantivo “alma-nephesh״ deriva do verbo que tem
a mesma raiz com o sentido de “respirar״, “inspirar ar״. O soprar do fôlego de vida
resultou no homem tornar-se uma alma vivente, um organismo que respira. A
partida do fôlego de vida resulta numa pessoa que se torna uma alma morta (“por
que morreu״). Assim, como Edmund Jacob explica, “a partida da nepJiesh é uma
metáfora para a morte; um homem morto é alguém que cessou de respirar”39.
Tory Hoff oferece um comentário semelhante:
Mediante a imagem concreta da partida do fôlego, o texto comunica que Raquel
estava no processo de morrer enquanto dava nome a seu recém-nascido. Ela não
estava ainda morta no sentido moderno da palavra, mas aproximava-se da morte
a cada momento. Estava perdendo a nepbesb vital que a ruah [respiração] sustinha
até o ponto em que em breve partiría da existência da nephesh.40
Concluímos que a partida da alma é uma metáfora para a morte, muito
,pro
vavelmente associada à interrupção do processo de respiração. Esta conclusão é
apoiada pelo segundo texto, 1 Reis 17:21, 2 2 , que agora examinaremos.
O RETORNO DA ALMA
Ao relatar a história do despertar à vida do filho da viúva de Sarepta pelo
profeta Elias, 1 Reis 17:20-22 assim menciona: “E estendendo-se três vezes sobre
o menino, clamou ao Senhor e disse: O Senhor meu Deus, rogo-te que faças a
alma deste menino tornar a entrar nele. E o Senhor atendeu à voz de Elias; e a
alma do menino tomou a entrar nele, e reviveu״.
Deve-se admitir que tomado isoladamente este texto poderia ser tido como
significando que a alma deixa o corpo por ocasião da morte e nesse caso foi recu
perada pela oração de Elias. Esta conclusão obviamente apoiaria a crença de que
a alma é imortal e sobrevive à morte do corpo.
Três principais razões nos levam a rejeitar esta interpretação. Primeiro, nem
nesta passagem nem em qualquer outra da Bíblia há qualquer indicação de que a
alma humana é imortal. Pelo contrário, temos visto que a alma é o princípio que
anima a vida manifesta no corpo enquanto o corpo está vivo.
Em segundo lugar, no verso 17, a morte do menino é descrita como o cessar
da respiração: “Não restou qualquer fôlego nele” [VKJ]. Isto sugere que o cessar
de respirar é que causou a partida da alma-nephesh, de modo que a recuperação da
respiração provocou o retomo da alma. Como Edmund Jacob ressaltou,
em 1 Reis 17:17 a falta de neshamah [respiração] provoca a partida da nephesh, que
retorna quando o profeta concede a respiração ao menino novamente, pois nepEesh
somente é o que faz uma criatura vivente tornar-se um organismo vivo.4'
Ο ΓΟΝΤΟ DE VISTA BÍBLICO DA NATUREZA HUMANA
Uma vez que a respiração é a manifestação exterior da alma, a cessação ou
restauração da respiração causa a partida ou retorno da alma.
Em terceiro lugar, no hebraico, o verso 21 literalmente assim diz: “Que a
alma da criança adentre novamente suas partes interiores”, Esta leitura, que
se acha à margem da Versão Autorizada, apresenta uma construção linguística
diferente. O que retorna às partes interiores é a respiração. A alma como tal
nunca se liga a algum órgão “interior” do corpo. O retorno da respiração às par-
tes interiores resulta no reavivamemo do corpo, ou, poderíamos dizer, faz com
que se torne outra vez uma alma vivente.
Basii Atkinson muito perceptivamente observa que
o escritor não pensava na alma como sendo ־a criança real ou carregando sua perso
nalidade. A criança jazia morta sobre a cama e a alma retornou à criança. Elias não
pensava ou falava termos como os que se ouvem nos modernos funerais: “não posso
mais imaginá-lo aqui42.״
A luz das considerações acima, concluímos que a declaração ״a alma do
menino tomou a entrar nele” simplesmente significa que a criança recuperou a
vida, ou começou a respirar novamente. É desta forma que os tradutores da Neu>
International Version entenderam a cláusula ao traduzirem, “a vida do menino
retornou-lhe”. Esta é uma maneira perfeita mente inteligível de entender o texto
e está em sintonia com o resto do ensino veterotestamentário.
C o n c l u s ã o
Nosso estudo do significado de neptash-alma no Antigo Testamento tem
mostrado que nem uma única vez a palavra transmite a idéia de uma entidade
imaterial, imortal capaz de existir à parte do corpo. Pelo contrário, descobrimos
que a alma-nepJiesh é o princípio animador da vida, o fôlego de vida, que está
presente tanto nos seres humanos quanto nos animais. A alma identifica-se
com o sangue porque este ultimo é visto como uma manifestação palpável da
vitalidade do ser. Por ocasião da morte, a alma cessa de funcionar como princí
pio animador da vida do corpo. O destino da alma liga-se inexoravelmente ao
destino do corpo porque o corpo é a manifestação da alma.
Natureza humana como corpo e carne
Nosso estudo do entendimento do Antigo Testamento quanto à alma já esta
beleceu que o corpo e a alma são uma unidade indivisível, ou seja, o homem visto
de duas diferentes perspectivas. O corpo é a realidade física da existência humana,
a alma é a vitalidade e personalidade da existência humana.
Im ortalidade o u R essurreição?
>
E lamentável que durante boa parte da história cristã o aspecto físico da
natureza humana tenha sido depreciado e até denegrido como indesejável e mau.
A palavra “carne" tem sido associada com imoralidade. Os “pecados da carne”
invariavelmente significam indulgências pecaminosas. A razão para esse ponto de
vista negativo é que “carne” é sinônimo de corpo, e o corpo é mau, ou, pelo me״
nos, suspeito, segundo o dualismo clássico, que influenciou enormemente a vida
e pensamento cristão ao longo dos séculos.
E verdade que na Bíblia “a carne” não representa o aspecto mais elevado e
nobre da natureza humana. Paulo em especial fala da inimizade que existe entre a
carne e o espírito. Mas isso não significa que Paulo ou o resto da Bíblia condenem
a carne ou o corpo como eticamente maus em si mesmos. Antes, a carne é empre
gada metaforicamente para representar a pessoa não-regenerada como um todo,
agindo segundo seus desejos e propensões pecaminosos naturais.
Historicamente, muito da espiritualidade e religiosidade cristãs tem sido influem
ciado por uma visão negativa do corpo como sede do pecado. O martírio da came ao
pnvar o corpo de alimento, agasalho, ou mesmo do prazer físico de um banho momo,
tem sido visto como indispensáveis para cultivar a vida espiritual4* Deste modo, para
fortalecer nossa espiritualidade cristã, é imperativo recuperar o aspecto holístico bíblico
da natureza humana, especialmente a perspectiva positiva física de nossa existência.
O CORPO CRIADO POR Ü EU S
O relato da criação propicia o ponto inicial lógico para o estudo da atitude
bíblica para com o aspecto físico da natureza humana. A história nos conta que a
matéria, inclusive o corpo humano, foi criada por Deus. A matéria não é um pruv
cípio eterno do mal antagonístico a Deus, como no Timaeus de Platão, mas parte
da boa criação de Deus para realizar seu eterno propósito. Toda a ordem física,
inclusive o corpo humano, foi criada por Deus segundo o seu eterno propósito.
Repetidamente, ao longo do relato da criação, nos é dito que Deus considerou
o que havia criado “e viu que era bom” (Gn 1:10, 12, 18, 21 e 25). Após ter criado
o homem à sua própria imagem, Deus admirou tudo o que havia criado e declarou
que era “muito bom” (Gn 1:31). Com base no relato bíblico da criação, podemos as״
segurar que este mundo materia[ é a boa criação de Deus e tem um lugar adequado
em seu eterno propósito.
E importante observar também que Deus criou o homem, não de alguma
substância espiritual divina, mas “do pó da terra” (Gn 2:7).
Não há qualquer parte do homem que seja de origem divina e que desça para assu״
mir residêncíâ temporária no “corpo” alienado. O homem de modo algum participa
da natureza divina. Ele é feito do pó da terra, e seu relacionamento com Deus não é
o de uma chama de fogo ou de uma gota d‘água no oceano, mas o de uma imagem
Ο ΡΟΝΤΟ DE VISTA BÍBLICO DA NATUREZA HUMANA
do original. Assim, nada há no homem que estabeleça uma identidade ou mesmo
uma continuidade entre ele e Deus, cotno a “alma״ racional na perspectiva *‘religiosa
[dualística] ”, Em vez de identidade, há meramente semelhança; em ves de continui
dade, há uma radical descontinuidade, como entre a criatura e o Criador.44
- O CORPO FÍSICO NÃO É MAU
O fato de que o corpo humano toi criado de substância material da terra
não significa que a matéria é a fonte da maldade na vida humana. No dualismo
platônico, a matéria é a fonte e origem do m al O mal é identificado com a maté
ria, que é um princípio eterno independente do Deus bom e a Ele antagônico, A
identificação do mal com a matéria tem levado a uma visão pessimista do corpo
e da existência física. E lamentável que esse ponto de vista pessimista do corpo
tenha influenciado tão fortemente o pensamento e prática cristãos.
No relato
,da criação de Adão e Eva não existe o mínimo indício de que o
corpo físico deve ser culpado por sua desobediência e queda. Uma tradição cristã
popular interpreta o pecado original como consistindo de um ato sexual ilícito. Tal
interpretação é totalmente destituída de apoio bíblico, A tentação em que Adão
e Eva caíram não foi o desejo de ter sexo, pias de agir como se eles fossem Deus.
O sexo é a boa criação de Deus do mesmo modo que todas as demais funções
fisiológicas do corpo humano.
A tentação foi “sereis como Deus” (Gn 3:5). A origem do pecado na vida
humana nada tem que ver com intercurso sexual ou qualquer outro ato tísico
do corpo. Antes, deve ser encontrado no fato de que o homem sucumbiu à ten
tação de tentar ser como Deus, em vez de ser um refletor da imagem de Deus,
Esta tem sido a manifestação fundamental do pecado, ou seja, colocar o eu antes
que Deus, no centro de tudo.
Na Bíblia, a origem cio pecado é encontrada não em algum defeito na cons
tituição física do corpo humano, mas na escolha errada, egoísta, feita pelos seres
humanos livres. Hoje, a humanidade acha-se numa condição de pecado porque as
pessoas levam vidas centralizadas no eu, ao invés de terem a Deus como o centro.
Devido a esse egoísmo, as tremendas possibilidades inerentes a nossa natureza
humana criada à imagem de Deus têm-se realizado numa forma desastradamente
errada. “O que são possibilidades sagradas tornaram-se realidades demoníacas”.45
O relato bíblico da criação e queda da humanidade localiza a origem do
pecado, não no corpo, mas na mente, ou seja, no desejo de agir e pensar em si
mesmo como sendo Deus. O pecado é volitivo, um ato da vontade, e não uma
condição biológica do corpo, A Bíblia tem uma visão salutar do corpo como o ob
jeto da criação e redenção divinas. Este ponto se toma mais claro ao examinarmos
o significado e o emprego vetero testamen tário de “carne-bas/wír”.
Im o r ta lid a d e o u Re ssu r r e iç ã o ?
A CARNE COMO SUBSTÂNCIA DO CORPO
O termo hebraico preciso para o corpo inteiro é gevíyyah, o qual é raro. É em
pregado uma dúzia de vezes para referir-se a um corpo vivo ou morto íGn 47:1$; lRs
31:10, 12; Hz 1:11, 23; ISm 31:10, 12; Dn 10:6). O termo comum empregado na
Bíblia hebraica para designar o corpo é bashar, que tecnicamente significa “carne״.
Bashar ocorre 266 vezes no Antigo Testamento hebraico. Seu significado mais comum
é o de ״carne” que constitui o corpo. Um exemplo desse emprego é Gênesis 2:21-24:
Então o Senhor Deus fez cair pesado sono sobre o homem, e este adormeceu; tomou
uma das suas costelas, e fechou o lugar com carne [bashar], E a costela que o Senhor
Deus tomara ao homem, transformou-a numa mulher, e lha trouxe. E disse o ho
mem: Esta, afinal, é osso dos meus ossos, e carne da minha carne [bashar].
Outro exemplo se encontra no galtno 79 :JL onde o salmista lamenta: “Deram os
cadáveres dos teus servos por alimento às aves dos céus, e a came [bashar] dos teus
santos às feras da terra”. O paralelismo indica que a came [bashar] é empregada como
sinônimo de corpo. Bashar denota a substância carnal que os seres humanos têm em
comum com os animais. Tanto o homem quanto os animais são came. O relato do
dilúvio ressalta isso: “Porque estou a derramar águas em dilúvio sobre a terra para
consumir toda came [bashar] em que há fôlego de vida debaixo dos céus” (Gn6:17; cf■̂
6:19; 9:17). “Os animais que estão contigo, de toda cajjie [bashar], assim aves, como
gado, e todo réptil que rasteja sobre a terra, faze sair a todos” (Gn8:17).
Os exemplos acima indicam que ״came-bashar” significa a substância do corpo
que o homem tem em comum com as ordens inferiores dos animais. A came é criada
por Deus que pode destruí-la, bem como curá-la e restaurá-la.
A CARNE COMO O HOMEM INTEGRAL
Há textos em que a came -bashar significa a pessoa integral, não somente uma
substância carnal, mas o ser racional e emocional. “O Deus, tu és o meu Deus for
te, eu te busco ansiosamente; a minha alma tem sede de ti; meu corpo [bashar] te
almeja” (51 63:1). “À minha alma suspira e desfalece pelos átrios do Senhor; o meu
coração e a minha came [bashar] exultam pelo Deus vivo!” 15184:2). Jó refere-se a
quem jaz no leito de enfermidade: ״Ele sente as dores apenas de seu próprio corpo
[bashar], e só a seu respeito sofre a sua alma” (Jó 14:22).
O paralelismo nestes textos entre alma e carne indica que a carne, à semelhan
ça da alma, pode funcionar como a sede das emoções. A carne e a alma não são duas
formgsdiferçnçes .çle exi^ênci^ mas duas manifestações da mesma pessoa. O ponto
de vista holístico bíblico toma possível empregar carne e alma intercambiavelmente
porque são partes do mesmo organismo.
Ο ΡΟΝΤΟ DE VISTA BÍBLICO DA NATUREZA HUMANA
A carne é também empregada para denotar o parentesco que une as pessoas
consangüineamente ou como membros da família humana. Assim, Judá aconselha
seus irmãos para não matarem José, “não ponhamos sobre ele a nossa mão, pois
é nosso irmão e nossa carne [bashar]* (Gn 37:27). Uma fórmula frequente para
expressar a consangüinidade é “meu osso e minha carne״_(Gn 29:14: lz 9:2; 2Sm
4lL-12lL2U-No relato do Dilúvio, “toda carne” (Gn 6:17, 19) denota o vínculo
mais amplo da família humana.
A CARNH COM O NATUREZA HUMANA EM SUA FRAQUEZA
A carne-bas/iar é também empregada na Bíblia para caracterizar a fraqueza
e fragilidade da natureza humana. Hans Walter Wolff intitulou o capítulo sobre
O ״.carne-bashar" como “o homem em sua enfermidade46״ título reflete o fre
quente emprego de “carne” no Antigo Testamento para indicar a “nulidade” hu
mana aos olhos de Deus. Lemos em ]6 34:14. 15: “Se Deus pensasse apenas em
si mesmo, e para si recolhesse o seu espírito e o seu sopro, toda carne [bashar]
juntamente expiraria e o homem voltaria para o pó”. Porque os seres humanos
são carne (fracos e frágeis), Deus se recorda deles: “Ele, porém, que é misericor
dioso, perdoa a iniquidade (...) Lembra-se de que eles são carne [bashar], vento
que passa e já não voltani$ l 78:38T 39).
Em um relacionamento com Deus, o homem é carne, uma criatura depen
dente dele para a contínua existência. “Toda a carne [bashar] é erva, e toda a
sua glória como a flor da ei^à” (Is 40:6). Por serem os humanos carne, acham-se
impotentes diante de Deus. “Em Deus (...) ponho a minha confiança e nada te
merei. Que me pode fazer o mortal fa carne-tashnr, VKJ]?” (Si 56:4, cf. Is 31:3).
Conseqüentemente, é imperativo que os seres humanos confiem em Deus e não
em sua “carne” (recursos humanos). “Maldito o homem que confia no homem,
faz da carne mortal [bashar] o seu braço”,(ír 17:5). N este texto, “carne-bashar”
denota a oposição humana a Deus. A carne não é intrinsecamente má do ponto
de vista ético. Pode ser fraca, mas não inerentemente má em sí. Quando um “co
ração de pedra” é transformado em um “coração de carne”, torna-se um coração
que obedece a Deus (Ez 11:19). Por causa de seus dotes naturais, a carne pode
tornar-se orgulhosa, íludir-se e conseqüentemente tornar-se antagônica a Deus.
O último significado transfere-se ao Novo Testamento onde Paulo o desenvolve
mais do que outros autores.
C o n c l u s ã o
Nosso estudo do significado e emprego de “came-bashar" no Antigo Testamento
revela que a palavra geralmente é empregada para descrever a redidade concreta da
existência humana da perspectiva de sua fraqueza e fragilidade. Contrariamente ao
dualismo clássico, o Antigo Testamento nunca vê a came e a alma como duas formas
Imortalidade ou R essurreição /
diferentes de existência. Antes, são manifestações da mesma pessoa e, consequente
mente, muitas vezes são empregadas intercambiavelmente, Um bom exemplo se en
contra em Salmos 84:2, onde a alma, o coração e a carne expressam o mesmo anseio
por Deus: “A minha alma suspira e desfalece pelos átrios do Senhor; o meu coração e a
minha came [ibas/iar] exultam pelo Deus vivo־'” Na perspectiva do Antigo Testamento
quanto à natureza humana nada há que seja meramente físico.
,Qualquer parte física
do corpo humano pode expressar também funções psicológicas.
O ponto de vista holístico da natureza humana tomou possível aos autores
bíblicos verem o corpo e a alma como expressões do mesmo organismo. Pedersen
corretamente faz notar que “a proposição de que a alma é carne é indissoluvel
mente ligada com o inverso disso, como seja, que a came é alma47.״ Os dois estão
indissoluvelmente ligados porque o corpo é a forma exterior da alma e a alma é a
vida interior do corpo.
A NATUREZA HUMANA COMO CORAÇÃO
No ponto de vista bíblico da natureza humana, o coração é o órgão central
e unificador da vida pessoal As palavras hebraicas traduzidas por “coração” são
kb e lebab> que se acham juntas 858 vezes.48 Isso toma o coração o termo mais
comum dentre todos os empregados para descrever a natureza humana. Walther
Eichrodt nota que “dificilmente há um processo espiritual que não possa ser rela
cionado de algum modo com o coração. Ele é tomado como o órgão igualmente
do sentimento, atividades intelectuais e a ação da vontade49.״
O coração no pensamento bíblico é a fonte da vida individual, a derradeira ori
gem das energias físicas, intelectuais, emocionais e volitivas, e, consequentemente,
a parte da pessoa que normalmente tem contato com Deus, No interior do coração
estão os pensamentos, as atitudes, os temores, e as esperanças que determinam a
personalidade ou caráter do indivíduo. Muitas das funções do coração correspon
dem às funções da alma. Isso se dá porque no ponto de vista bíblico da natureza
humana, nenhuma distinção radical existe entre os vários aspectos do indivíduo.
O CORAÇÃO É A SEDE DAS EMOÇÕES
Todas as emoções de que uma pessoa é capaz são atribuídas ao coração.
O coração pode ser ou estar alegre (Pv 27:11; At 14:17), triste (Nm 2:2), perturba
do (2Rs 6:11), corajoso {2Sm 17:10), desanimado (Nm 32:7), temeroso (Is 35:4),
invejoso (Pv 23:17), confiante (Pv 31:11), generoso (2Cr 29:31), movido pelo ódio
(Lvl9;17) ou amor (Dt 13:3)2°
Ο ΡΟΝΤΟ DE VISTA BÍBLICO DA NATUREZA HUMANA
As emoções do coração são retratadas vívida e concretamente. Diz-se que
o coração desfalece (Gn 42:28), desmaia (G n 45:26), excita-se (SI 38:10), es
tremece (ISm 28:5), agita-se (Pv 23:17; Dt 19:6), adoece (Pv 13:12). Q estado
do coração determina toda manifestação da vida. “O coração alegre aformoseia
o rosto, mas com a tristeza do coração o espírito se abate״ (Pv 15:13). Mesmo a
saúde é afetada pela condição do coração. ״O coração alegre é bom remédio, mas
o espírito abatido faz secar os ossos” (Pv 17:22).
As PARTES ÍNTIMAS COMO SEDE DAS EMOÇÕES
Para efeito de clareza, devemos acrescentar que a sede das emoções é encon
trada não somente no coração, mas também nas partes íntimas do corpo huma
no, referidas em hebraico pelo termo qereb, “intestinos”. É impressionante como
o Antigo Testamento considera algumas dessas paTtes íntimas do corpo como o
local e fonte das capacidades humanas superiores. Como Hans Walter Wolff res
salta, “as partes intimas do corpo e seus órgãos são ao mesmo tempo o portador
dos impulsos éticos e espirituais do homem”.51
[ Uns poucos exemplos servem para ilustrar este ponto. Jeremias pergunta ao
i povo de Jerusalém: “Até quando hospedarás contigo os teus maus pensamentos?”
i(Jr 4:14). Aqui, a expressão “hospedarás contigo” traz “qereb'nos intestinos”,
)como a localização dos maus pensamentos. Provérbios 23:16 diz: “Exultará o meu
jfritimo [‘rins-feeia^oC VKJ], quando os teus lábios falarem coisas retas”. O sal-־
/mista agradece a Deus por aconselhá-lo e porque “durante a noite o meu coração
U‘rinsJceIflgwt\ VKJ] me ensina” (SI 16:7).
Em outra parte, o salmista associa os rins com o coração como os órgãos mais
sensíveis: “Quando o coração se me amargou e as entranhas [‘rins-JteítfyoC VKJ]
se me comoveram” (SI 73:21). Aqui, os rins agem como consciência do indiví
duo. O fígado também pode servir para expressar profunda dor. Jeremias lamenta:
“Com lágrimas se consumiram os meus olhos, turbada está a minha alma, o meu
coração [ fígado~kabed\ VKJ] se derramou de angústia por causa da calamidade
da filha do meu povo”, AfO À; //
Essa breve digressão sobre as partes interiores do corpo teve intenção de
demonstrar que estas podem agir como a sede das emoções, do mesmo modo que
o coração, isso é possível porque no pensamento holístico bíblico uma parte da
pessoa pode às vezes representar o organismo inteiro.
3 CORAÇÃO COMO SEDE DO INTELECTO
Na maioria dos casos, o coração na Bíblia denota o centro da vida intelectu-
d, precisamente o que atribuímos à cabeça ou ao cérebro. Ao contrário de nossa
:ultura ocidental, onde o coração é associado primariamente com emoções e sen-
Im o r t a l id a d e o u Re ssu r r e iç ã o ?
timentos, na Bíblia o coração é o centro de raciocínio da pessoa que determina o
que ela é: “Porque assim como imagina em sua alma, assim ele é” (Pv 23:7).
Provérbios 15:14 descreve a função essencial do coração no sentido bíblico:
“O coração entendido procura o conhecimento״. O coração busca o conhecimen
to não meramente por causa do conhecimento, mas para capacitar o indivíduo a
tomar decisões morais responsáveis. E altamente significante o fato que o termo
"coraçâo-íeb” ocorre com uma frequência muito maior na literatura de sabedoria
(99 vezes somente em Provérbios, 42 vezes em Eclesiastes, e 51 vezes no altamen
te didático livro de Deuteronomio).52
A grande sabedoria de Salomão consistia no fato de que ele não pediu por
longa vida ou riquezas, mas por um coração entendido: “Dá, pois, ao teu servo
coração compreensivo para julgar a teu povo para que prudentemente discirna
entre o bem e o mal; pois quem poderia julgar a este grande povo?” (lRs 3:9). O
coração entendido que Salomão solicitou é o que chamaríamos de uma mente
com discernimento. Por causa de seu caráter concreto, a língua hebraica dificil
mente pode expressar a idéia de “pensar”, exceto para a sentença “disse contigo”
[“dizer no coração”, VKJ] (Gn 27:41; SI 10:6). É com o coração que uma pessoa
planeja (Pv 16:9), busca conhecimento, compreende (Ec 8:16}, e medita sobre as
profundas coisas da vida (SI 4:4).
Sendo o centro da razão, o coração é também o centro da vontade e, daí, da vida
moral. O coração pode planejar coisas perversas (Pv 6:18) e tomar-se corrompido
(Pv 11:20). Pode elevar-se com orgulho (Dt 8:14), endurecer-se (Zc 7:12), teimar (Jr
3:17), ou desviar-se de Deus (lRs 11:2). Por outro lado, o bom coração é perfeito (lRs
8:61), ou inculpável (SI 119:80), puro (SI 51:10), reto (SI 32:11). O coração pode ser
purificado (SI 73:13) ou renovado (Ez 18:31). Um novo coração toma possível inter
nalizar a vontade de Deus como revelada em sua lei (Ez 11:19; 36:26).
O CORAÇÃO SE COMUNICA COM DEUS
Como o centro do raciocínio da personalidade humana, o coração é capaz de
comunicar-se com Deus. O coração fala a Deus (SI 27:8), recebe sua palavra (Dt
30:14), e confia nele (SI 28:7). Deus pode dar ao homem um coração entendido
(lRs 3:9) ou retirar todo entendimento (Jó 12:24). Para seus misteriosos propósi
tos, Deus pode endurecer o coração (Êx 4:21) ou pode amolecê-lo (Ed 6:22).
Sendo que em resultado da queda, o coração é inclinado para o mal, a transforma
ção do coração ocorre pela divina graça. Deus promete escrever a sua lei nos corações
humanos (Jr 31:33) e criar um novo coração nos seres humanos (3151:10). Ele remove
rá o coração endurecido e o substituirá com um coração receptivo (Ez 36:26). No Novo
Testamento nos é dito que Deus derramou o seu amor nos corações humanos (Rm 5:5).
Cristo habita no coração humano (Et 3:17) e sua paz ali reina (Cl 3:15).
Ο ΡΟΝΤΟ ΠΕ VISTA BÍBLICO DA NATUREZA HUMANA
C o n c l u s ã o
Esta breve pesquisa das funções do coração no Antigo Testamento mostra
que o coração é o centro e fonte de todas as atividades religiosas, intelectuais e
morais. Mais do que qualquer outro termo veterotestamentário, o coração expres-
sa o centro mais profundo da existência
,uma unidade indivisível e extrai implicações para nosso destino e
muitas outras questões.
O dualismo antropológico tem causado sério prejuízo ao enfraquecer a bendita
esperança do aparecimento de Cristo e distorcer nosso entendimento do mundo por
vir. Também tem fomentado muitas, falsas dicotomias, inclusive uma visão negativa
do corpo em contraste com a alma e um conceito de salvação como uma experiência
interior, antes que transformação total. O pior de tudo é que tem dado margem a
um ensino sadístico de qiie Deus faz os ímpios sofrerem tormento consciente in
findável no inferno, o que tem representado um tertível peso à consciência cristã
e ofensa tão desnecessária a tantos pesquisadores da verdade.
Um grande número de eruditos׳ concorda com o autor com respeito à natu
reza humana, mas nenhum extraiu tão corajosamente as necessárias implicações.
Este livro é muito necessário a fim de combater a opinião tão persistente quanto
equivocada entre os cristãos de que a alma é uma substância imortal, uma crença
que é tantò antibíblica quanto prejudicial. Congratulo-me com o Dr. Bacchiocehi
e sou-lhe grato por esta obra decisiva.
" . C l a rk I I P in n o c k , Ph.D.
■ P r o fe sso r de T e o l o g ia M c M a s t e r D iv im t y C ollege H a m il t o n
O n t a r io , C a n a d á
A breviaturas
L iv r o s d a B íb lia
Gn Gênesis ' ·. Ne Neemias
Êx Êxodo Et Ester
Lv Levítico . ■ Jó ־ . ■ Jó ־
Nm Números SI , Salmos
Dt Deuteronomio Pv Provérbios
Js. . Josué Ec . Eclesiastes
Jz ■ juízes Ct Cantares de Salomão
Rt ' Rute Is ־ !saías
l-2$m 1-2 Samuel Jr Jeremias
l-2Rs 1-2 Reis Lm _ Lamentações
1-2Q . 1'2 Crônicas Ez Ezequiel
Ed Esdras ■' Dn . Daniel
Os . Oséias Rm Romanos
Jl joel l-2Co . ■1-2 Coríntios
Am Amos . G1 Gálatas
Ob Obadias Ef Efésios
Jn Jonas . . . .. G1 Gálatas . ■
Mq Miquéias Fp Filipenses
Na Naum Cl Colossenses'
Hc Habacuque ■l-2Ts 1-2 Tessalonicenses
Sf Sofpnias l-2Tm 1-2 Timóteo
Ag Ageu ' Tt Tito
Zc : Zacarias Fm Filemom
Ml· : Malaquias Hb Hebreus
Mt. ' Mateus Tg Tiago
Mc Marcos l-2Pd. 1-2 Pedro
Lc LucãS l-2-3Jo 1-2-3 João
Jo João ja ׳■ . . ׳ . Judas
At Atos ■ Ap ־■־. Apocalipse
Por que escrever um livro sobre o ponto, de vista bíblico da natureza e
destino ■humanos? N ãoè este -um assunto liquidado, já resolvido por teólogos
há muito tempo? Qual é o objetivo de investigar esta questão novamente? As
pessoas realmente se preocupam.com;o que a Bíblia ensina sob.re a constituição
áe sua natureza e o plano.de Deus para. ri.seu destino?
A verdade é que.a questão da natureza e destino humanos está longe de
ser um tema resolvido'. Em anos recentes, numerosos eruditos bíblicos, filósofos
e cientistas têm reexaminado o ponto de vista dualista tradicional da natureza
humana, que consistiria de um corpo material, mortal, e uma alma espiritual,
imortal. Eles têm constatado que esse ponço de vista é contrário às Escrituras,
à razão e à ciência. ... ' ׳
Um detido, reexame dos termos bíblicos básicos para o homem (corpo, alma,
espírito, carne, mente, coração) tem levado muitos, eruditos a concluir que na
Bíblia hão há dicotomia entre um coroo mortal e uma alma.imortal que.,·‘se
separam” na. morte. Tanto o corpo quanto a alma, a. carne e o espírito são uma
unidade indivisível, parcelas da mésmá pessoa que deixam de existir por ocasião
dá. morte até a ressurreição. Ao .ler, esses estudos fica-se com a impressão de
que o cristianismo está saindo de um estupor e subitamente descobrindo que
por demasiado tempo manteve úma opinião da natureza humana derivada do
dualismo platônico, antes que do holismp bíblico.
O maciço ataque da erudição 'ao ponto de vista dualístico tradicional, sobre
a natureza humana finalmente se infiltrará nas fileiras das denominações cris
tãs. Quando isso acontecer, causará uma cris,e intelectual e pessoal nos cristãos
acostumados a crer que ·pôr ocasião׳ da'׳ morte suas־ almas libertam-se do corpo
e continuam; a existir,;seja na bem-aventurança do paraíso ou no tormento do.
inferno. Muitos cristãos se desapontarão profundamente aq descobrirem que
suas crénças no além-túmulo são um.equívoco, .
Não há dúvida de que a erudição bíblica haverá de provocar grande an
siedade sobre milhões de cristãos que crêem que, suas almas desincorporadas
irão para o céu depois da morte.·O propósito deste estudo não ê intensificar tal
ansiedade, mas encorajar todos os cristãos: comprometidos com. a autoridade
normativa das Escrituras a reexaminarem suas crenças tradicionais e rejeitá-
las caso se demonstrarem antibíblicás. A esperança do cristão por um amanhã
melhor deve firmar-se nos inegáveis ensinos da. Palavra de Deus, antes que em
tradições eclesiásticas.
R a z õ e s p a r a e s c r e v e r e st e l iv r o
Duas principais razões motivafam-me a empreender esta pesquisa. A
primeira é estar ciente de que a despeito dos maciços ataques por eruditos
bíblicos contra o dualismo tradicional, a crença na existência consciente apõs
a morte está adquirindo maior aceitação popular. Segundo recente pesquisa
Galíup, 71% dos americanos acreditam numa vida consciente apõs a morte.1
O aumento da aceitação dessa crença pode ser atribuído a fatores como a po
lida imagem de médiuns e par anormais, às sofisticadas pesquisas “científicas”
sobre experiênciás de quase-morte.e a popular canalização da nova.era.com
supostos espíritos do passado. Métodos como esses são muito bem-sucedidos
em fazer as pessoas crerem na mentira de Satanás de que, não importa o que
façam, “é certo que não morrereis” (Gn 3:4), tornando-se assim como׳ deuses
por viverem para sempre. ׳
A segunda razão para empreender este estudo é a de que a maior parte
dos estudos eruditos nessa área são técnicos era natureza e limitados em es
copo. São’escritos numa linguagem técnica ■fazendo uso de palavras originais
hebraicas e gregas que a maior parte dos leitores leigos não compreende. O
escopo delas é limitado e muitas vezes tratam exclusivamente da questão da
natureza humana (antropologia bíblica) õu dò destino humano (escatologia.
bíblica). Especialistas bíblicos raramente tentaram mostrar a relação entre o
ensmo bíblico quanto à constituição da natureza humana e seu ensino sobre a
natureza do destino humano.
A percepção da crescente aceitação . popular dá crença na existência
consciente após a morte e á escassez de livros escritos em nível popular abor
dando a questão de uma perspectiva bíblica conveiiceram-me da necessidade
de escrever este livro. Minha metá e dupla. Por uni lado, tento desmascarar
com raciocínio bíblico a mais antiga è possivelmente maior mentira de todos
os tempos, ou seja, a de que os seres humanos possuem almas imortais que
vivem para sempre. Esse ensino enganoso tem fomentado unia ampla gama de
crenças errôneas que afetam adversaníentc o pensametilO è prática cristãos.
Pór outro lado, esforço-me por demonstrar como o ponto de vista hoEstico
bíblico da natureza humana melhora a hòssá apreciação da vida física deste
mundo presente, dá redenção e de nosso destino final.
I m o r t a l id a d e o u R e s s u r r e iç ã o ?
In tr o d u ç ã o
Procedimento
O procedimento que segui consiste em duas etapas. Primeiro, investiguei
nos capítulos 2 e 3 a compreensão do Antigo e Novo Testamentos sobre na
tureza humana, examinando o significado e emprego de termos-chave como
alma, corpo, espírito, carne e coração. Este estudo demonstra que tais termos são
freqüentemente utilizados intercambiavelmente porque o ponto de vista bíblico
da natureza humana é holístico, e não dualístico. O corpo e a alma, a carne e o
espírito, são características da mesma pessoa, e não componentes destacáveis
que “se separam” na morte.
Em segundo lugar, demonstrei nos capítulos 4 a 7 como o ponto de vista
holístico da natureza humana relaciona-se com os ensinos bíblicos concernentes
à natureza da morte, ao estado dos mortos até a ressurreição, ao segundo adven
to, à punição final dos malfeitores e ao mundo por vir. O estudo revela que há
uma clara ligação
,humana, o que uma pessoa realmente é
no mais íntimo de seu ser. Como declarado em 1 Samuel 16:7, “O homem vê o
exterior, porém o Senhor vê o coração”.
Em muitas maneiras, o coração é o centro unificador da pessoa inte
gral, corpo e alma. Algumas das funções do coração sobrepõem-se àquelas da
alma, mas isto não surpreende porque, segundo a perspectiva holística bíblica,
não ocorre distinção radical entre a alma e o coração. Jesus disse: “Amaras o
Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu
entendimento״ (Mt 22:37).
"O coração”, escreve Pedersen, “é a totalidade da alma como um poder de
caráter e operacional (...) Ne^/ies/r é a alma na soma de sua totalidade, tal como se
apresenta; o coração é a alma em seu valor mais íntimo”.53 Q que é dito a respei
to da alma muitas vezes pode ser aplicado ao coração. A unidade funcional que
encontramos entre o corpo, a alma e o coração nega o ponto de vista dualístico
da natureza humana, que separa a alma do corpo. Apesar de os dualistas verem as
tunções espirituais e morais da natureza humana como uma prerrogativa da alma,
elas são muitas vezes atribuídas ao coração, demonstrando que na Bíblia a alma
não existe e não opera como uma essência distinta, imaterial, à parte do corpo.
A NATUREZA HUMANA COMO ESPÍRITO
Até aqui, temos visto que o Antigo Testamento define a natureza humana
como uma unidade, o homem sendo uma alma (ser vivente) segundo um aspecto,
cume (ser físico) segundo outro aspecto, e coração (ser racional) por outro aspec
to ainda. Há mais um importante aspecto a ser considerado, qual seja, o homem
como espírito. O termo “espírito” traduz o hebraico ruach e seu equivalente neo-
testamentárío pneuma. Estudaremos este último no capítulo 3, onde examinamos
o ponto de vista do Novo Testamento sobre a natureza humana.
O estudo da presença do espírito de Deus nos seres humanos é importante
porque os dualistas freqüentemente identificam o espírito de Deus numa pessoa
com a alma dada por Deus para cada indivíduo e a Ele retomando quando da morte.
*Assim, nossa preocupação é estabelecer, primeiro, a natureza do espírito de Deus
numa pessoa, e, em segundo lugar, se o espírito nos seres humanos é um componen
te distinto e separado da natureza humana ou um aspecto indivisível da mesma.
Im ortalidade ou Ressurreição?
Um exame superficial dos dados estatísticos do emprego do termo “espí-
rito-mic/i” no Antigo Testamento demonstra que há pelo menos duas coisas
singulares a respeito deste termo que ocorre num total de 389 vezes. Primeira
mente, não menos do que 113 vezes rwach-espírito denota o poder natural do
vento. Deste modo, é um termo associado com a manifestação de poder. Em se
gundo lugar, 35 por cento das vezes (136 vezes) ruach-espírito refere-se a Deus.
Somente 33 por cento das vezes (129 vezes) refere-se aos homens, animais e
falsos deuses. Isso é surpreendente em face do fato de que “carne״bashar” nunca
é aplicado a Deus, e “alma-nepJiesh” somente se aplica a Deus em três por cento
dos casos (21 vezes).54
A base desses dados estatísticos, Hans Walter Wolff corretamente conclui
que iuruach [espírito]’ deve, a panir do próprio início, apropriadamente ser cha
mado um termo teoantropológico”,55 isto é, um termo com conotações divino-
humanas. A Bíblia aplica raoc/i-espírito tanto a Deus quanto ao homem. Para
entender o conceito bíblico do espírito do homem é importante entender o signi
ficado bíblico do espírito de Deus. Iremos nos empenhar em fazer isso examinando
especialmente como o espírito de Deus opera dentro da natureza humana.
O SENTIDO DE “ eSPÍRITO-RUACh ”
O termo hebraico geralmente traduzido por “espírito” é ruach, que literal
mente significa “ar em movimento, vento”. Assim, empênesis 1:2. o espírito-nw-
ch de Deus movia-se sobre as águas e em Isaías 7:2, “como se agitam as árvores do
bosque”. Wolff assinala que ruach não significa o ar estático, mas o “ar em movi
mento” 56 que gera considerável poder. Não surpreende que o poder formidável do
vento [ruach] é frequentemente visto como uma manifestação do poder de Deus.
O vento oriental [ruach] traz gafanhotos (Ex 1Q:13). Um vento poderoso [ruac/i]
sopra sobre a Terra e faz com que as águas do dilúvio baixem ÍGn 8:1 ).
O poder manifesto pelo vento é associado nas Escrituras ao sopro de Deus,
que é seu poder criativo e sustentador. Encontramos esse uso pela primeira vez em
Gênesis 2:7; “Então formou o Senhor ao homem do pó da terra, e lhe soprou nas
narinas o fôlego [neshamah] de vida, e o homem passou a ser alma vivente”.
Antes examinamos esse grande texto para assegurar-nos da ligação entre
“fôlego de vida” e “alma vivente”. Agora buscamos entender mais plenamente
como o “fôlego de vida” leva o homem a tornar-se uma alma vivente. A palavra
hebraica empregada para fôlego aqui não é ruach-espírito, mas o termo raramen
te utilizado nes/izzmzzfiTôlego. O significado dos dois termos é semelhante, como
indicado pelo fato de que aparecem em paralelo em cinco passagens (Is 42:5; Jó
27:4; 32:8; 33:4; 34T4, 15). Jó 33:4 declara: “O espírito [ruach] de Deus me fez; e
o sopro do Tòdo-poderoso me dá vida”. Uma vez mais: “se Deus pensasse apenas
Ο ΡΟΝΤΟ DE VISTA BÍBLICO DA NATUREZA HUMANA
em si mesmo, e para si recolhesse o seu espírito [ruach] e o seu sopro [neshamah},
toda a came juntamente expiraria, e o homem voltaria para o dó” (Tó 34:14, 15).
Nestas passagens, neshamah e rwach são utilizadas como sinônimos, contudo
parece haver uma leve diferença entre os dois termos. Nes/Wntfh denota respiração
física calma, pacífica, enquanto ruach descreve uma forma mais ativa e dinâmica
de respiração. Ruach parece também ser o agente que torna a respiração possível.
-Enquanto em mim estiver a minha vida [“fôlego-neshamoh^VKJ] , e o sopro
Iruach] do Todo-poderoso nos meus narizes...” (1ó 27:31. Aqui a respiração-nesha״
mah está na pessoa, enquanto o espírito-ruach está no respirar através das narinas.
-Assim diz Deus, o Senhor (...) que dá fôlego de vida [neshamah] ao povo que nela
está, e o espírito [ruac/i] aos que andam nela” (Is 42:5). Aqui espírito -ruach signi
fica mais do que respirar porque é dado somente “aos que andam nela”. E como se
a respiração-neshamah fosse uma das manifestações do espírito-ruach de Deus. O
último termo tem significados e funções mais amplos. Uma das funções do espírito
de Deus é conceder a vida e sustêda mediante o processo de respiração. “O fôlego
vital de Deus é dom de Deus; ele respira por cortesia do espírito de Deus”.57
E interessante observar que a leitura marginal de Gênesis 7:22 na Versão
Autorizada (em inglês) verte “o fôlego de vida” como “o fôlego do espírito de
vida", Essa tradução literal do hebraico transmite a idéia de que o fôlego de vida
[neshamah] deriva do espírito [ruach] que concede vida. Comentando este texto,
Basil Atkínson escreve:
Neshcmuih [fôlegol parece ser uma propriedade ou porção da ruach [espírito] e ser
concernente com o que hoje chamaríamos de vida física. Ruach, que também é um
princípio de vida, é muito mais amplo. Produz e sustém a vida interior e exterior do
homem, seu intelecto, pensamentos abstratos, emoções e desejos, bem como cobre
a ação integral da neshamah sobre a vida física,5*
O ESPÍRITO COMO UM PRINCÍPIO DE VIDA
O uso paralelo de neshamah-fôlego de vida e ruach-espírito nos textos citados
demonstra que o “fôlego de vida” é o espírito de Deus que transmite vida, mani
festo na criação da vida humana e do universo como um todo. “Que variedade,
Senhor, nas tuas obras (...) cheia está a Terra das tuas riquezas. Se ocultas o teu
rosto, eles se perturbam; se lhes corta a respiração [ruach], morrem, e voltam ao
$eu pó. Envias o teu espírito [ruach] e eles são criados, e assim renovas a face da
teira” (SI 104:24, 29, 30). “Fôlego” e “espírito” aqui traduzem ruach, indicando
assim que o “fôlego de vida” é igualado ao espírito de Deus que transmite vida e
que cria e renova “a face da terra”.
Há numerosos
,textos no Antigo Testamento em que o espírito׳-ruach refere-se
ao princípio de vida presente nos seres humanos. Em Isàías 38:16, encontramos o rei
Im o r ta lid a d e o u R essu r r eiç ã o ?
Ezequias declarando: ',Senhor, por estas disposições tuas vivem os homens, e inteira
mente delas depende o meu espírito [ruach]”. A cláusula “depende o meu espírito”
muito provavelmente refere-se à recuperação da saúde de Ezequias, uma vez que o
texto prossegue dizendo: “Portanto, restaura-me a saúde e faze-me viver” (Is 38:16),
Aqui, o espírito -ruach é claramente identificado com vida, Nâo há qualquer sugestão
de que o espírito no homem é um componente independente e imortal da natureza
humana. Antes, é o princípio animador de vida visível mediante a respiração.
ídolos que não têm qualquer vida são descritos como sem “fôlego-ruac/i”.
“Todo ourives é envergonhado pela imagem que ele esculpiu; pois as suas ima
gens são mentira, e nelas não há fôlego [ruach]” (Jr 10:4). “Eis que está coberto
de ouro e de prata, mas no seu interior não há fôlego [ruach] nenhum" ÇHc
y2:19). Em ambos os textos, ruach é vertido como “fôlego" porque o respirar é
uma manifestação do espírito de Deus na natureza humana. E evidente que os
ídolos são destituídos de vida porque nâo contam com ruach, o princípio que
anima a vida que capacita uma pessoa a respirar.
Ao descrever o destino do rei Zedequias às mãos de Nabucodonosor, Jeremias
emprega uma interessante figura de linguagem: “O fôlego [ruach] de nossa vida, o
ungido do Senhor foi preso nos forjes deles” (Lm 4:20). Aqui Zedequias é imaginado
como a própria vida-nwcfi da nação que foi removida quando o rei foi levado em
cativeiro. É onde temos um claro exemplo de ruach denotando o princípio de vida.
Falando de Sansão, Juízes 15:19 declara: “Tendo Sansão bebido, recobrou
alento [ruach]” (Jz 15:19). Esse despertar não é da morte, mas da exaustão. Encon
tramos exatamente o mesmo emprego em 1 Samuel 30:12 e Daniel 10:17. Em todos
esses casos, o espírito-rwach denota a renovação física da vida. Sendo um agente
transmissor de vida, o espíríto-mich adequadamente pode representar também a
renovação física da vida. A ligação entre espírito-ruach e vida é evidente.
Em sua famosa visão do vale dos ossos secos, Ezequiel propicia um exemplo
muito expressivo do poder vivificador do espírito de Deus-ruac/i:
Assim diz o Senhor Deus a estes ossos: Eis que farei entrar o espírito [ruach] em
vós, e vivereis. (...) E sabereis que Eu sou o Senhor. (...) Vem dos quatro ventos, ó
espírito [ruach], e assopra sobre eles, para que vivam. Então ele me disse: Profetizei
como ele me ordenara, e o espírito [ruach] entrou neles e viveram e se puseram em
pé (Ez 37:5, 6, 9, 10).
Aqui o fôlego de Deus é seu espírito vitalizador, como na criação do ho
mem. O espírito transmissor de vida é identificado com o fôlego de Deus porque
sua manifestação levou os corpos mortos a tomarem vida e respirarem nova
mente. O respirar é uma manifestação tangível da vida e assim propicia uma
adequada metáfora para o princípio animador de vida do espírito.
Ο ΡΟΝΤΟ DE VISTA BÍBLICO DA NATUREZA HUMANA
O ESPÍRITO COMO PALAVRA DE D EUS
No Salmo 33:6 encontramos um interessante paralelismo entre o fôlego de
Deus e sua palavra: “Os céus por sua palavra se fizeram, e pelo sopro [ruach] de
sua boca o exército deles”. Aqui, o fôlego-rwach de Deus age como sinônimo para a
palavra de Deus porque ambos procedem de sua boca. O paralelismo sugere que o
tôlego de Deus é mais do que ar que se move. Esse é o poder de vida manifesto me
diante a palavra falada de Deus.
Outro exemplo em que a palavra de Deus está associada com ruach-espírito
se acha em Salmos! 147:18: “Manda a sua palavra, e o derrete; faz soprar o vento
[ruach] e as águas correm”. Aqui, a palavra de Deus está associada com ruach-fòlè-
20 ou vento, presumivelmente porque a fala é produzida pela respiração e procede
da boca. Deus é descrito analogicamente de acordo com o processo humano de
falar mediante a respiração.
Nunca devemos nos esquecer que os hebreus descreviam as coisas como as viam,
concretamente, não abstratamente. Viam que a fala era causada pelo respirar, assim
era natural associarem o hálito de Deus com sua palavra. Deste modo, o fôlego de
Deus devia ser entendido não como o ar que se move, mas como o poder transmissor
de vida manifesto mediante sua palavra falada. Quando Deus fala as coisas aconte
cem, porque sua palavra não é um discurso vazio, mas um poder transmissor de vida.
Q ESPÍRITO COM O RENOVAÇÁO M ORAL
A renovação ou recriação empreendida pelo espírito de Deus não é somente
tisica, mas também moral. Davi orou: “Cria em mim, ó Deus, um coração puro,
e renova dentro em mim um espírito [ruach] inabalável Não me repulses da tua
presença, nem me retires o teu santo espírito” (SI 51:10, 1 1 ). O “espírito [ruach]
inabalável” é a correta disposição de uma pessoa para com Deus que é tornado
possível pelo espirito [ruach] santo de Deus”. Assim, o espírito -ruach é tanto o
espírito de Deus quanto o espírito do homem. Deus concede o espírito para criar
e suster a vida. O homem recebe o espírito para viver segundo a vontade de Deus.
Friedrích Baumgarten escreve: “O espírito de Deus é um poder criativo e transfor
mador, e seu propósito é criar uma esfera de religião e moralidade”.59
Em Ezequiel encontramos o espírito 'ruach empregado três vezes para o novo
princípio regenerado de vida que Deus coloca dentro do crente quando ele se
converte (Ez 11:19; 18:31; 36:26). “Dar-vos-eí coração novo, e porei dentro em
vós espírito [ruach] novo; tirarei de vós o coração de pedra e vos darei coração
de carne . (Ez 36:26). Aqui, o Knovo espírito-ruíic/i” associa-se a um “novo cora
ção , porque descobrimos que o coração é a mente, ou o centro de raciocínio do
indivíduo. O novo espírito-ruach” é uma atitude de voluntária obediência aos
mandamentos de Deus que procede de uma renovação mental (Rm 12:2). Esse
Im orta lid a d e o u R essu rreiçã o?
significado é esclarecido pelo verso que vem logo a seguir: “Porei dentro em vós
o meu espírito [ruach] e farei que andeis nos meus estatutos, guardeis os meus
juízos e os observeis15 (Ez 36:27b E mediante o poder capacitador do espírito de
Deus que nossa mente e renovada de modo a que possamos viver de acordo com
os princípios morais que Deus revelou para o nosso bem-estar
O ESPÍRITO COMO PODER CAPACITADOR
O espírito de Deus é manifestado somente na criação e sustentação da vida,
mas também em equipar os indivíduos para tarefas específicas. Quando Deus co
missionou Gideão para livrar os israelitas da tirania de Midiã, "Então o espírito
׳ do Senhor revestiu a Gideão1’ Qz ó;34) e capacitou [ruach]־ o a conduzir os israe
litas à vitória. Foi o espírito do Senhor que equipou Gideão para a tarefa, porque
ele questionava suas próprias qualificações: “Ai, Senhor meu, com que livrarei a
Israel? Eis que a minha família é a mais pobre em Manassés, e eu o menor da casa
de meu pai11 j]z 6:15).
A mesma coisa ocorreu com Jefté: "Então o espírito [ruach] do Senhor veio
sobre jefté; e atravessando este por Gileade e de Mispa de Gileade contra os filhos
de Amom” (Iz 11; 29, 32). Em tais casos, o espírito de Deus capacitou certos diri
gentes israelitas a realizar atos sobre-humanos em momentos críticos.
O espírito de Deus também foi concedido a líderes nacionais para levarem a
cabo o plano de Deus para Israel. Quando o ״espírito do Senhor” veio sobre Saul, ele
transformou-se “em outro homem11 (ÍSm 10:6). Semelhantemente, quando Samuel
ungiu a Davi para suceder a Saul como rei, “daquele dia em diante o espírito [ruach]
do Senhor se apossou de Davi’1 (ISm 16:13). Observe-se que Davi foi ungido rei,
tendo-se “retirado de Saul o espírito [ruach] cio Senhor” (ISm 16:14)■ O espírito
que deixou Saul dificilmente poderia ser sua alma que partiu para Deus, uma vez
que ele continuou vivo. A retirada do espírito desqualificou Saul como rei de Israel,
enquanto
,a concessão do espírito a Davi qualificou-o para reinar sobre o povo.
É evidente que o espírito que Deus concedeu a Gideão e Jefté para julga
rem e a Davi para reinar não é o mesmo “fôlego de vida” que está presente em
todo ser humano. Este último é o princípio de vida que anima todo ser humano,
enquanto o primeiro é o espírito de Deus concedido à indivíduos escolhidos para
equipá-los para uma missão especial. No caso de Bezazel, por exemplo, o espírito
de Deus equípou-o com talentos especiais para a edificação do santuário. "E o
enchi do espírito de Deus, de habilidade, de inteligência, e de conhecimento, em
todo artifício, para elaborar desenhos e trabalhar em ouro, em prata, em bronze, e
para lapidação de pedras de engaste, para entalho de madeira, para toda sorte de
habilidades” (Êx 31:3-5).
Ο ΡΟΝΤΟ DE VISTA BÍBLICO DA NATUREZA HUMANA
O espírito de Deus comissionava profetas para comunicarem mensagens es
peciais para o povo. Esequíel declara: ‘1Então entrou em mim o espírito, quando
falava comigo, e me pôs em pé, e ouvi o que me falava”. Repetidamente, os pro
fetas dizem que o espírito do Senhor veio sobre eles. Zacarias fala da “lei, nem as
palavras que o Senhor dos exércitos enviara pelo seu espírito fruach] mediante os
profetas que nos precederam” (Zc 7:12).
A concessão do espírito de Deus é vista como uma comissão oficial divina.
Em Isaías 61, o Servo do Senhor, o Messias, é ungido pelo espírito para a sua mis
são: “O espírito [ruach] do Senhor está sobre mim, porque o Senhor me ungiu
para pregar boas-novas aos quebrantados, enviou־־me a curar os quebrantados de
coração, a proclamar libertação aos cativos, e a pôr em liberdade os algemados” JJs
61:1)» Joel profetizou do tempo messiânico quando o espírito de Deu^seria derra
mado sobre todo crente: “E acontecerá que derramarei o meu espírito sobre toda
a carne; vossos filhos e vossas filhas profetizarão, vossos velhos sonharão, e vossos
jovens terão visões”. Nesses casos, o espírito de Deus opera não como o princípio
animador da vida física, mas como o agente que equipa os crentes para o serviço.
•
O ESPÍRITO COMO A DISPOSIÇÃO DE UM INDIVÍDUO
A idéia de poder manifesto pelo espírito-ruach é levada ao que chamaría
mos a disposição ou impulso dominante de um indivíduo. Uma pessoa viva tem
impulsos que o dominam, ou, pelo menos, tentam fazê-lo, e que ele deve vencer.
Isso é freqüentemente expresso no Antigo Testamento pelo termo espírito-ruach,
e caracteriza o espírito humano muitas vezes antagônico a Deus. Oséias queixa-
se de que um “espírito [ruach] de prostituição” iludiu os sacerdotes (Os 4:12).
Ezequiel denunciou os “profetas loucos, que seguem o seu próprio èspírito sem
nada ter visto” (Ez 13:3). Salmos 78:8 fala da geração do deserto “cujo espírito
[ruach] não foi fiel a Deus”. Provérbios 25:28 compara um homem que não “tem
domínio próprio” [“não governa seu próprio espírito-ruach”, VKJ] a uma cidade
sem muros. Eclesiastes diz que “melhor é o paciente [‘em espírito-ruacJT, VKJ] do
que o arrogante [‘orgulhoso em espírito-ruach’, VKJ]”. Em todos esses exemplos,
o espírito denota uma atitude de obediência ou desobediência a Deus. Assim, não
é para ser confundido com a função transmissora de vida do espírito de Deus.
As vezes, o espírito -ruach é a sede da dor, geralmente referido no hebraico
como “amargura do espírito”. E-nos dito que o povo de Israel não atendeu “a
Moisés por causa da ânsia de espírito [ruach] e da dura escravidão” (Ex 6:9).
Ana disse ao sacerdote, “sou mulher atribulada de espírito Iruachj; não bebi
nem vinho nem bebida forte; porém venho derramando a minha alma perante o
Senhor” (ISm 1:15). Aqui o espírito abatido é comparado com o esvaziamento
da alma perante Deus.
Im o rta lid a d e o u R essu r r eiç ã o ?
O espíríco e a alma são mencionados juntos porque ambos representam a
vitalidade da vida afetada pelo sofrimento. ErruProvérbios 15:13. lemos que ‘4com
a tristeza do coração o espírito [ruach] se abate”. Aqui» descobrimos que o coração
é a sede do sofrimento, mas o sofrimento despedaça o espírito ou a vida íntima de
uma pessoa. A interação entre espírito e alma, ou coração e espírito, faz-nos lem
brar o entendimento holístico bíblico da natureza humana, seus vários aspectos
sendo todos partes de um ser humano indivisível.
Há casos em que o espírito-ruach é a sede das emoções. Provérbios 16:32
declara: “Melhor é o longânimo do que o herói de guerra, e o que domina o seu
espírito [rnach] do que o que toma uma cidade”. Governar o espírito de alguém
significa controlar o temperamento ou ira. Em vários exemplos, ruach é traduzido
como “ira” [Jz 8:3; Ez 3:14; Pv 14:29; 16:32; Ec 7:9; 10:4). Noutros textos, ruach
denota coragem: “Ouvindo isto, desmaiou-nos o coração, e em ninguém mais há
ânimo [ruach] algum” Qs 2 :1 1 ).
Há também passagens em que espírito-nmc/t é empregado com o sentido de
tristeza: “Porque o Senhor te chamou como a mulher desamparada e de espírito
[ruach] abatido” (ls 54:6). “Perto está o Senhor dos que têm o coração quebranta
do, e salva os de espírito [ruach] oprimido” (SL34:18).60 O espírito-ruach também
pode denotar contrição e humildade. Assim sendo, temos a bela passagem em ba-
ias 57:15: ‘4Habito no alto e santo lugar, mas habito também com o contrito e aba
tido de espírito [ruach], para vivificar o espírito [ruach] dos abatidos, e vivificar o
coração dos contritos”. Novamente em Isaías 66:2: “O homem para quem olharei é
este: o aflito e abatido de espírito [ruach], e que treme diante da minha palavra”.
Este breve levantamento dos vários empregos de espírito-rtíac/i no Antigo
Testamento demonstrou que o espírito é um princípio vital que deriva de Deus e
mantém a vida humana. Numa maneira figurada, o espírito-ruach é empregado
para referir-se à renovação moral interior, boas ou más disposições, impulsos do
minantes, dor, coragem, tristeza» contrição e humildade. Nenhum dos empregos
que estudamos sugere que o espírito retém consciência ou personalidade quando
deixa uma pessoa por ocasião da morte. A função do espírito como transmissor de
vida e princípio sustentador cessa quando a pessoa morre.
A PARTIDA DO ESPÍRITO NA MORTE
Onze passagens do Antigo Testamento falam da partida ou remoção do
espírito por ocasião da morte.61 Destas, quatro merecem atenção especial por
que são freqüentemente utilizadas para apoiar a crença de que por ocasião da
morte o espírito vai para Deus, levando consigo a personalidade e a consciência
do indivíduo que falece.
Ao predizer a morte do Senhor na cruz, o Salmo 31:5 declara: “Nas Tuas
mãos entrego o meu espírito [ruacky\ O “espírito” que Cristo entregou nas mãos
Ο ΡΟΝΤΟ DE VISTA BÍBLICO DA NATUREZA HUMANA
de seu Pai nada mais era do que sua vida humana que estava deixando nas mãos
de seu Pai para aguardar sua ressurreição! Ao dele partir o princípio animador de
vida, o Senhor morreu e mergulhou em inconsciência.
Falando de criaturas marinhas, o salmista declara: uSe lhes cortas a respi
ração [ruach]} morrem, e voltam ao seu pó” (SI 104:29). Ninguém alegará que
o espírito-mzch dos peixes quando morrem leva consigo consciência e persona
lidade. Temos razão para crer que o mesmo seja verdade para os seres humanos,
porque a mesma expressão é empregada para ambos. De fato, no verso seguinte
a criação dos animais é descrita por meio do espírito divino transmissor de vida,
como é a criação do homem: “Envias o teu espírito, eles são criados, e assim
renovas ־a face da Terra” (Sl 104:30).
Como a criação da vida é metaforicamente representada por enviar o espí
rito de Deus, assim a terminação da vida, morte, é descrita como a retirada ou
remoção do fôlego de Deus. A última é claramente expressa em Jó 34:14, 15:
“Se Deus (...) para si recolhesse o seu espírito [ruach] e o seu sopro [neshamah],
toda carne juntamente expiraria, e o homem voltaria para o pó”. Novamente, o
mesmo pensamento é expresso na bem conhecida passagem de Eclesiastes 12:7:
UE o pó volte à
,terra, como o era, e o espírito volta a Deus, que o deu”.
Estes últimos dois textos são muito importantes, porque são comumente
citados para apoiar a crença de que o “espírito-ruach1’ que retoma para Deus é a
alma que deixa o corpo por ocasião da morte transportando consciência e per
sonalidade. Esta interpretação carece dfe respaldo bíblico por quatro principais
razões. Primeiramente, em parte alguma na Bíblia é o fôlego de Deus ou espírito
identificado com a alma humana. A existência da alma depende da presença do
fôlego [neshamah] o.u espírito [ruach] transmissor de vida. E quando o espírito
transmissor de vida é retirado, uma pessoa cessa de ser uma alma vivente e tor
na-se uma alma morta. Assim, o salmista diz: “Sai-lhes o espírito [ruach] e eles
tornam ao pó; nesse mesmo dia perecem todos os seus desígnios” (Sl 146:4).
Em segundo lugar, em parte alguma a Bíblia sugere que o espírito transmis
sor de vida que retorna para Deus continua a existir como uma alma imaterial
do corpo que morreu. Pelo contrário, a Bíblia ensina que quando Deus retira o
seu fôlego de vida ou espírito de vida, o resultado não é a sobrevivência da alma,
mas a morte da pessoa total, “perecem todos os seus desígnios” [“pensamentos”,
VKJ1 (Sl 146:4), porque não há mais consciência. À morte aplica-se tanto ao
corpo quanto à alma, porque, como vimos, ambos são inseparáveis. O corpo é a
forma exterior da alma e a alma é a forma interior do corpo.
Em terceiro lugar, o espírito que retorna para Deus refere-se a todos os
homens (“toda carne”), não somente o dos bons. Os que alegam que o espírito
de todas as pessoas, salvas e perdidas, vão para Deus para julgamento ignoram
que as Escrituras ensinam que o julgamento tem lugar, não quando da morte,
mas por ocasião da vinda do Senhor no fim do mundo.
Im o r t a l id a d e o u R e ssu r r e iç ã o ?
Em quarto lugar, a Bíblia nunca sugere que o fôlego de vida toma o seu possui
dor imortal ou isento de morte. Em nenhuma das 389 ocorrências de rwdc/i-espírito
no Antigo Testamento há qualquer sugestão de que ruach-espírito seja uma entidade
inteligente da natureza humana capaz de existência à parte de um corpo físico. Pelo
contrário, a Bíblia fala da morte daqueles que possuem o fôlego de vida: “Porque eis
que estou para derramar águas em dilúvio sobre a Terra para consumir toda carne
em que há fôlego de vida [ruach] debaixo dos céus; tudo o que há na Terra perecerá
[gava-deixa de respirar] ” (Gn 6:17). “Pereceu toda carne que se movia sobre a Terra,
(...) Tudo o que tinha fôlego de vida [ruach] em suas narinas, tudo o que havia em
terra seca, morreu [gm/a-deixou de respirar]” (Gn 7 :2 1 , 22).
E evidente a partir de textos como estes que possuir o fôlego ou o espírito de
vida não significa ter uma alma imortal. O fôlego de vida é simplesmente o dom
de vida dado aos seres humanos e animais pela duração de sua existência terrena.
O espírito ou fôlego de vida que retorna para Deus poT ocasião da morte é sim
plesmente o princípio de vida concedido por Deus tanto para os seres humanos
quanto para os animais. Este ponto é claramente exposto em Eclesiastes 3:19:
“Porque o que sucede aos filhos dos homens, sucede aos animais; o mesmo lhes
sucede; como morre um, assim morre o outro, todos têm o mesmo fôlego de vida
[ruach], e nenhuma vantagem tem o homem sobre os animais”. Os que alegam
que os animais não possuem o espírito [ruach] de vida, mas somente o fôlego
[neshamah] de vida ignoram o que tanto Eclesiastes 3:21 quanto Gênesis 7:15, 22
claramente expressam ao dizer que os animais possuem o mesmo espírito--ruach de
vida concedido aos seres humanos,
Não há indicação na Bíblia de que o espírito de vida dado ao homem por
ocasião da criação fosse uma entidade consciente antes de ter sido dado. Isso nos
dá razão para crer que o espírito de vida não tem personalidade consciente quan
do retorna para Deus. O espírito que retorna para Deus é simplesmente o princí
pio animador de vida concedido por Deus tanto para homens quanto animais pela
duração de sua existência terrestre.
C o n c l u s ã o
Chegamos ao final da nossa investigação de quatro destacados termos em
pregados no Antigo Testamento para descrever a natureza humana, quais sejam,
alma, corpo, coração e espírito. Constatamos que esses termos não representam
entidades diferentes, cada uma com seu próprio conjunto de funções, mas diferentes
funções que são inter-relacionadas e integradas dentro do mesmo organismo, O Anti
go Testamento considera a natureza humana como uma unidade, não uma dicotomia.
Não há contraste entre o corpo e a alma, como esses termos nos sugerem.
Ο ΡΟΝΤΟ DE VISTA BÍBLICO DA NATUREZA HUMANA
A alma não é uma parte imaterial, imortal da natureza humana que se con
trasta com o corpo, mas designa o princípio־ de vitalidade ou vida na natureza
humana. A última é composta de uma forma que consiste do pó e um princípio
vital, chamado ocasionalmente fôlego (neshamah) e geralmente espírito (ruach),
soprado nele por Deus. O corpo e o divino sopro juntamente constituem a alma
vital, ativa-nephesh. A sede da alma é o sangue, porque é visto como a manifesta·'
ção tangível da vitalidade da vida.
Desde o princípio de vida, o termo “alma-nephesh” é estendido para incluir o
sentimento, paixões, vontade, e personalidade de um indivíduo. Pode então ser em
pregado como sinônimo para o próprio homem. As pessoas são contadas como almas
{Gn 12:5; 46:27). A morte afeta a alma-nephesh (Nm 23:10) bem como o corpo.
O espírito־*ruac/i, que Uteralmente significa ״ar em movimento, vento”, é fre
quentemente empregado para Deus. O espírito -ruach de Deus é o seu fôlego, ou
seja, o seu poder manifestado em criar e suster a vida (Sl 33:ó; 104:29, 30). A res
piração humana-rwach deriva do fôlego-ruach de Deus (Is 42:5; Jó 27:3). Em um
sentido figurado, o espírito ■־ruach é expandido para referir-se à renovação moral
interior, boas e más disposições, vida emocional e volitiva, assim sobrepondo-se
um tanto à alma-nephesh. A diferença entre alma-nephesh e espírito-ruach é que
este último designa principalmente uma pessoa vivente em relação com outros
seres humanos, enquanto o último refere-se a uma pessoa em relação com Deus.
Contudo, temos visto que nem a alma nem o espírito são considerados como parte
da natureza humana capaz de sobreviver à morte do corpo.
As referências do Antigo Testamento à carne ou ao corpo nunca sugerem que
as funções corporais sejam puramente biológicas e independentes das funções psi
cológicas da alma. Não há distinção no Antigo Testamento entre órgãos físicos e
espirituais, porque todo o conjunto de funções humanas mais elevadas tais como
sentimento, pensamento, conhecimento, amor, observância dos mandamentos de
Deus, louvor e oração são igualmente atribuídos aos órgãos “espirituais” da alma (ou
espírito) e ao órgão “físico” do coração e, ocasionalmente, dos rins e intestinos.
Os órgãos corporais realizam funções psíquicas. Assim, o coração pensa, os
rins se regozijam, o fígado lamenta, e os intestinos sentem simpatia^ Isso é possível
pqrque do ponto de vista holístico da natureza humana uma parte da pessoa pode
às vezes representar o organismo integral
As referências à partida (Gn 35:18) e retomo (lRs 17:21, 22) da alma não po
dem ser legitimamente empregadas para apoiar o ponto de vista de que, por ocasião
da morte, a alma deixa o corpo e retoma a ele por ocasião da ressurreição. Temos visto
que a partida da alma é uma metáfora para a morte, indicando que a pessoa cessou de
respirar. Semelhantemente, o retomo da alma é uma metáfora para a restauração da
vida, indicando que a pessoa começou a respirar novamente. O que é verdadeiro com
relação à alma é também verdadeiro quanto ao fôlego de vida ou espírito que retoma
Im q r ta u d a d e o u R essurreição .7
para Deus por ocasião da morte. O que retoma a Deus não é uma alma imortal, mas
simplesmente o princípio animador da vida concedido por Deus tanto aos seres
,huma'
nos quanto aos animais pela duração de sua existência terrena.62
Ralph Walter Doermann chega basicamente à mesma conclusão em sua dis
sertação doutoral “Sheoí no Antigo Testamento”, apresentada em 1961 na Uni
versidade Duke. Ele escreveu:
É evidente do ponto de vista hebraico da unidade psicossomática do homem que há
pouco espaço para uma crença na ‘1imortalidade da alma”. O u a pessoa inteira viveu
ou a pessoa inteira desce à morte, a forma mais fraca de vida. N ão houve existência
independente para a ntach [espírito] à parte do corpo. Com a morte do corpo, o ruach
' [espírito] impessoal “volta para Deus que o deu” (Ec 12:7) e o nephesh foi destruído,
embora estivesse presente num sentido m uito débil nos ossos e sangue. Q uando esses
foram sepultados ou cobertos, a pouca vitalidade que permaneceu foi anulada.6’
Resumindo nossa conclusão, podemos dizer que o ponto de vista holístico
do Antigo Testamento da natureza humana elimina a distinção entre corpo e
alma como dois campos completamente diferentes da realidade. Ademais, remo
ve a base para a crença na sobrevivência da alma por ocasião da morte do corpo.
Nosso próximo passo será estabelecer se o Novo Testamento apóia ou modifica a
perspectiva holística do Antigo Testamento a respeito da natureza humana. Esta
questão é abordada no capítulo seguinte.
R e f e r ê n c ia s
1RE, Hughes, Hope/or a Despairing World (Grand Rapids, 1997), 50.
2 Para uma pesquisa das várias interpretações da imagem de Deus no homem, ver H. D. McDo
nald, The Christian View of Man (Westchester, Illinois, 1981), 33-41.
3 exemplo, C. Ryder Smith afirma que ambas as palavras hebraicas e seus equivalentes no
grego sugerem uma semelhança física entre Deus e o homem (The Bible Doctrine of Man
[Londres, 1951), 29-30). Semelhanremence, H. Gunkel apela ao evidente modo antropo
mórfico em que Deus é descrito no Antigo Testamento (The Legend of Genesis [Chicago,
1901], 8-1(3). #
4 R. Laird-Harris, Mn?.׳ - God’s Eternal Creation: A Study of Old Testament Culture (Chicago,
־ -24 ,(1971
5 John Calvin, Institutes of the Christian Religion I, XV, 3 (Londres, 1949), Vol. 1, 162, 165.
6 E opinião expressa por Paul Jewett, que segue a Karl Barth em considerar a imagem de Deus
no homem como precisamente o de macho e fêmea. Diz ele “Gênesis 1:27b (‘macho e fêmea
os criou’) é uma exposição de 1:27a (,à imagem de Deus o criou’)” (Man: Mate and Female
[Grand Rapids, 1975], 33).
7 Webster's New Collegiate Dictionary, 1974 ed., s.v. “Soul."
3 Claude Tresmontant, A Study in Hebrew Thought (Nova Iorque, i960), 94. Este é um livro alta
mente recomendado sobre a diferença entre o pensamento grego e hebraico.
Ο ΡΟΝΤΟ DE VISTA BÍBLICO DA NATUREZA HUMANA
9 Aubrey Johnson, The Vitality of the Individual in the Thought of Ancient Israel (Cardiff, Wales,
1964), 19.
10 Johannes Pedersen, brae/: Its Life and Culture (Londres, 1926), Vol. 1, 99.
11Ibid., 99-100.
13 Hans W alter Wolff, Anthropology o f the Old Testament (Filadélfia, 1974), 10. -
13 Dom Wulstan M ork, The Biblical Meaning of Man (Milwaukee, Wisconsin, 1967), 34.
14 Johannes Pedersen (referenda 10), 171.
b H. W heeler Robinson, The Christian Doctrine of Man (Edimburgo, 1'952), 27.
16 Dom W ulstan Mork (referência 13), 34■
17 Norman Snaith, “Justice and Immortality”, Scottish jounutl ofTheobgy 17, 3 (Setembro 1964),
312-313.
|S Basil E C. Atkinson, Life and Ivtmortality (Londres, n. d.), 1-2.
19Ibid., 2.
30 Ibidem.
21 Tory Hoff, , nephesh and the Fulfillment It Receives as psyche”, em Toward a Biblical View of
Man: Some Readings, eds. A rnold H. De GTaaffe James H. O lthuis (Toronto, 1978), 103.
22 Basil F, C. Atkinson (referência 18), 17■
25 A tabulação é de Basil K C. Atkinson (referência 18), 3.
24 Hans Walter Wolff (referência 12), 10.
23 Tory Hoff (referência 21), 98.
.ibidem ־6
37 ibidem.
28 Hans Walter Wolff (referência 12), 25.
29 Dom W ulstan M ark (referência 13), 40.
30 ibidem.
51 W. David Stacey, The Pauline View■ of Man (Londres, 1,956), 87.
32 Dom Wulstan M ork (referência 13) ,41-
33 Johannes Pedersen (referência 10), 179.
34Ibid., 180.
33 Edmund Jacob, “Nephesh,” Theological Dictionary o f the New Testament, ed. Gerhard Friedrich
(Grand Rapids, 1974), Vol. 9, 621.
36 Johannes Pedersen (referência 10), 171.
37 Robert A. Morey, Death and the Afterlife (Minneapolis, 1984), 49.
38 Hans W alter Wolff (referência 12), 20.
39 Edmund Jacob (referência 35), 619.
40Tory Hoff (referenda 21), 101.
41 Edmund Jacob (referência 35), 618.
42 Basil E C. Atkinson (referência 18), 10.
43 As regras monásticas claram ente revelam quão im portante foi mortificar a carne propiciando
ao corpo som ente o que era indispensável para a sobrevivência, a fim de cultivar o bem-estar
da alma. A regra beneditina, por exemplo, permite o uso de banhos aos doentes, mas res
tringe-os aos sãos: “O uso de banhos será oferecido ao enfermo tão frequentem ente quanto
necessário; aos sãos, e especialmente aos jovens, muito raram ente” (Henry Bettenson, Docu
ments of the Christian Church [Oxford, 1967 b 121).
44 D. R. G. Owen, Body and Soul (Filadélfia, 1956), 167.
45 Ibid., 169.
30 Hans Walter Wolff (referência 12), 26-31.
47 Johannes Pedersen (referência 10), 178.
Im ortalidade o u R essurreição?
46, A tabulação é de Hans Walter Wolff (referência 24), 40.
40 Walther Eichrodt, Theology of the OU Testament (Filadélfia, 1967), VoL 2, 143.
50 R. C. Dentan, “Heart,” The Interpreters Dictionary of the Bible (Nashville, 1962), Vol. 2, 549.
51 Hans Walter Wolff (referenda 24), 66.
52 A tabulação é de Hans Walter Wolff (referência 24), 40,
5? Johannes Pedersen (referência 10), 104·
54 A tabulação é de Hans Walter Wolff (referência 24), 32.
:5 Ibidem.
56 Ibtdem.
y< Dom Wulstan Mork (referência 13), 73.
48 Basil F. C. Atkinson (referência 18), 18.
w Friedrich Baunigarten, “Spirit o f God," Bible Key Words (Nova Iorque, 1961), 1.
rC Ver também Ez 21:12; Ex 6:9; Is 61:3; 65:14; Dn 7:15.
:As referências veterotestamentárias à partida ou remoção do espírito por ocasião da morte são ־11
Sí 31:5; 76:12; 104:29-30; 146:4; Jó 34:14-15; Ec 3:19-21; 8:8; 12:7.
bl As referências veterotestamentárias da partida ou remoção do espírito na morte são: Sal. 31:5;
76:12; 104:29, 30; Jó 34:14, 15; Ecl. 3:19-21; 8:8; 12:7.
65 Ralph Walter Doermann, “Sheoí in the Old Testament’ (Dissertação Ph. D. Duke University,
1961), 205.
CAPÍTULO 3
A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM NO
Novo T e s t a m e n t o
Em nossas Bíblias, a primeira página do Novo Testamento segue-se imediata
mente à última página do Antigo Testamento. Isso pode sugerir a leitores desinfor-
mados que não há um intervalo de tempo entre os dois testamentos. Na realidade,
cerca de quatro séculos os separam. Durante esse período intertestamentário, o
povo judeu esteve exposto, tanto em seu lar, na Palestina, quanto na diãspora (dis
persão), à cultura e filosofias helenísticas (gregas) de grande influência. O impacto
do helenismo sobre o judaísmo é evidente em muitas áreas, inclusive na adoção do
dualismo grego por algumas obras literárias judaicas produzidas nessa época.
A literatura judaica produzida durante o período intertestamentário é ge
ralmente conhecida como livros apócrifos ou pseudepígrafosJ A maioria dos
cristãos não considera esses livros não-canônicos como divinamente inspirados
ou com a mesma autoridade dos livros da Bíblia. Mas isso não diminui o valor
histórico dos textos, uma vez que são considerados uma importante fonte de
informação sobre ocorrências históricas e ideológicas da época.
No que diz respeito à natureza e destino humanos, duas principais escolas de
pensamento judaico mantiveram-se leais ao ponto de vista holístico da natureza
humana do Velho Testamento e propiciam um destacado pano de fundo para a
compreensão do Novo Testamento. O judaísmo palestino via a morte como um
sono inconsciente da pessoa inteira e destacava a necessidade da ressurreição final
do corpo. A importância desse ponto de vista para o estudo do Novo
,Testamento
pode ser ilustrado pelo livro apócrifo A p o c a lip se d e B a m q u e (conhecido como 2
Im ortalidade ou R essurreição?
Baruque), escrito por um judeu palestino na última metade do primeiro século da
era cristã. O autor ensina que os mortos “dormem na terra” e quando o Messias re
tornar “todos os que adormeceram na esperança dele ressuscitarão novamentè’1.2
Todos os justos serão reunidos num instante e os ímpios lamentarão, pois o tempo
de seu tormento é chegado.3 Tal ponto de vista é impressionante mente semelhan
te ao ensino neotestamentário da ressurreição do corpo, que é parte do conjunto
de idéias que pareciam “loucura” para os gregos (ICo 1:23).
A segunda escola de pensamento é o judaísmo helenístiçp, grandemente in
fluenciado pelo dualismo grego. O judaísmo helenístico floresceu especialmente em
Alexandria, o lar de Filo, o bem conhecido filósofo judeu que tentou empreender
uma síntese das idéias hebraicas e gregas. Nos escritos dos judeus helenistas en
contramos claras referências à sobrevivência e imortalidade da alma, A existência
desincorporada parece ser o destino eterno dos salvos. Por exemplo, o Litro dos Jubi
leus, apócrifo {cerca de 135 a.C.) ensina que “os ossos” jazem na sepultura enquanto
os “espíritos” vivem independentemente: “E seus ossos repousarão na terra, e os
espíritos deles terão muito gozo, e eles saberão que é o Senhor que executa julga
mento, e revela misericórdia a[...] todos quantos o amam” (23:31).4
Numa linha semelhante de pensamento.-A^dbedoria de Salomão, escrita por
um judeu helenista entre 50 e 30 a.C., declara que “as almas dos justos estão nas
mãos de Deus, e nenhum tormento jamais os tocará[.·d eles estaò em paz[-.,.] sua
esperança é plena imortalidade” (3:1, 3,'4).5 A mesma visão é encontrada emj}
Macabeus, um tratado filosófico escrito por um judeu helenista pouco antes da era
cristã. Os mortos justos ascendem imediatamente para a ventura eterna,6 enquan
to os ímpios descem ao tormento eterno, variando em intensidade.7
Em suma, durante o período, intertestamentário, como adequadamente ex
presso por Wheeler Robinson, wa interpretação dualística da relação do corpo e
alma (ou espírito) é encontrada na linha helenista do judaísmo (Sabedoria 9:15).
Np entanto, é alheio à linha de pensamento palestiniana, que liga o pensamento
do Antigo Testamento com muito do Novo”.*
— Ao lidarmos com o estudo da visão neotestamentária da natureza humana, não
podemos ignorar a possível influência do judaísmo helenista sobre os autores dos livros
do Novo Testamento. Afinal de contas, com a possível exceção de Mateus, todos os
livros do Novo Testamento foram escritos em grego e empregam quatro grandes pa
lavras gregas antropológicas: pyydié-alma, ímeuma - espírito, somu-corpo e sarç-came.
Estas palavras eram comumente empregadas nos tempos do Novo Testamento com
um sentido grego dualístico. A alma e espírito denotam a parte imaterial e imortal da
natureza humana, enquanto o corpo e a carne descreviam a parte material e mortal
A questão então é: Em que extensão o sentido dualístico dessas importantes
palavras gregas é refletido nos escritos do Novo Testamento? Surpreendentemente,
como veremos neste capítulo, o sentido e uso dualístico desses termos estão ausen-
A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM NO N O V O ' ! ESTAMENTO׳
ces no Novo Testamento- Mesmo aquelas passagens que parecem ser dualísticas em
seu contraste entre carne e espírito revelam, em um exame mais detido, um enten
dimento holístico da natureza humana. Carne e espírito não se configuram como
duas partes separadas e opostas da natureza humana, mas dois diferentes tipos de
estilo de vida: o centralizado no eu versus o centralizado cm Deus.
A razão para a ausência de influência dualística no Novo Testamento é que
seus autores utilizaram importantes palavras gregas da natureza humana em har
monia com seus equivalentes originais no Antigo Testamento, onde as idéias se
originaram, e não consoante os sentidos prevalecentes na sociedade helenísta.
Senipre devemos ter em mente que “o elo entre o Antigo Testamento hebrai
co e o Novo Testamento grego é a grande versão Septuaginta (grega) do Antigo
Testamento realizada em Alexandria no terceiro século a.Q A tradução foi feita
pvr judeus, que obvíamente entendiam o sentido das palavras hebraicas e ten
cionavam fazer com que os termos gregos que utilizavam lhes correspondessem.
De sse modo, a ,Septuaginta segue o hebraico, e o Novo Testamento segue a Sep-^.
maginta. A versão Septuaginta não foi inspirada, mas na providência divina ela
propiciou este valioso elo lingüístíco entre o Antigo e o Novo Testamentos9.״ A
assimilação do dualismo grego na tradição cristã ocorreu após o Novo Testamento
ter sido escrito. J, Robinson oferece alguns excelentes exemplos de como Paulo
usou palavras gregas segundo o significado de termos hebraicos correspondentes,
€ não segundo o uso grego prevalecente. Por exemplo, a frase de Paulo “a mente
camal״ (Cl 2T8), não fazia sentido à mentalidade grega, porque a mente (nous)
sempre era associada à alma (psychê) e nunca à carne. Semelhantemente, as refe
rências paulinás ao corpo espiritual (ICo 15:44, 46) e à contaminação da carne e
espínto (2Co 7:1) “teriam parecido um absurdo para os gregos10״ porque, segundo
des. o corpo não era espiritual e o espírito não podia ser contaminado. Indicações
.iesse tipo demonstram que o ponto de vista neotestamentário da natureza huma
na reflete o pensamento hebraico (Antigo Testamento) e não o grego.
O b je t iv o s d o c a p ít u l o
Este capítulo busca entender a perspectiva da natureza humana no Novo
Testamento pelo exame de quatro destacados termos antropológicos, quais sejam,
espírito, corpo, e coração. Estes são os mesmos quatro termos que examina-
■K3S no capítulo anterior em nosso estudo da visão da natureza humana do Antigo
Testamento. Os vários significados e empregos desses termos são estudados para
dbtenninar se eles seguem os significados e utilizações dos termos hebraicos cor-
*spondentes no Antigo Testamento.
Nosso estudo revela que prevalece uma continuidade definida entre o Anti-
£> e Novo Testamentos no entendimento holístico da natureza humana. A noção
Im orta lid a d e o u Ressu r r eiç ã o ?
de imortalidade da alma, embora popularmente crida por outros ao tempo de
redação do Novo Testamento, está ausente dos׳escritos do Novo Testamento por׳
que seus autores foram fiéis aos ensinos do Antigo Testamento.
O Novo Testamento revela não só continuidade com o Antigo Testa׳
mento no entendimento da natureza e destino humanos, mas também uma
compreensão ampliada à luz da encarnação e ensinos de Cristo. Afinal de
contas, Cristo é a verdadeira cabeça da raça humana, desde que Adão “era
um tipo daquele que havia de vir” (Rm 5:14). Enquanto no Antigo Testamen
to a natureza humana primariamente se relaciona com Adão por virtude da
criação e queda, no Novo Testamento a natureza humana se relaciona com
Cristo em virtude de sua encarnação e redenção. Cristo é o cumprimento da
revelação sobre a natureza humana, seu significado e destino. Cristo oferece
um significado mais profundo da alma, corpo e espirito humanos porque o
efeito imediato da redenção efetuada por ele foi a dádiva de seu Espírito, que
,'habita convosco e está em vós" Qo 14:17).
A NATUREZA HUMANA COMO A1MA
A palavra grega psyché-alma é empregada no Novo Testamento em har
monia com os significados básicos do hebraico nepfies/i-alma que encontramos
no Antigo Testamento, Passaremos brevemente em revista o significado básico
de psyc/iê-alma, dando especial atenção ao significado expandido da palavra à
luz dos ensinos e ministério redentor de Cristo.
A l m a c o m o p e s s o a
A alma-frSNcfié no Novo Testamento denota a pessoa integral no mesmo
sentido de nebhesh no Antigo Testamento. Por exemplo, em sua defesa perante
0 sinédrio, Estêvão menciona que ״setenta e cinco almas [ps^cfié]” da família
de Jacó desceram ao Egito, uma
,forma numérica encontrada no Antigo Testa
mento fGn 46:26, 27; Êx 1:5: Dt 10:22־). No dia de Pentecostes, “três míl almas
1 frsychê r fAt 2:41) foram batizadas e “em cada alma [ps^chê] havia temor” (At
2:43). Falando da família de Noé, Pedro declara que ״oito almas [ps:ycíiê] foram
salvas pela água” (IPe 3:20). E evidente que em textos como esses a “alma׳
ps^chê” é empregada como um sinônimo para pessoa.
Dentro deste contexto, mencionamos a famosa promessa de Cristo de des
canso para as ״almas [ps;ycfiê]” daqueles que aceitam o seu jugo (Mt 11:2^). A
expressão “descanso para as vossas almas [ps^ctó]” procede de Jeremias ôTój
onde descanso para a alma é prometido àquele que caminha de acordo com os
A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM N O N O V O Ti ATA MENTO
mandamentos de Deus. O descanso que Cristo concede à alma, como Edward
Schweizer assinala, “difere completamente do que encontramos no mundo gre-
go, onde a alma encontra descanso quando é libertada do corpo, pois aqui a
unidade e totalidade do homem são mantidas. Nos seus atos físicos em obedi
ência é que o homem encontra o descanso de Deus”. 11 Cristo dá descanso (paz
e harmonia interiores) às almas daqueles que aceitam sua graciosa provisão de
salvação (“vínde a mim”) e vivem em harmonia com os princípios de vida que
ele ensinou e exemplificou (“aprendei de mim”).
A l m a c o m o v i d a
O sentido mais freqüente da palavra alma-psychê no Novo Testamento é o de
“vida”. De acordo com uma contagem, psychê é traduzida 46 vezes como “vida”. 12
Nesses casos, “vida” propicia uma tradução adequada do grego psychê pôrque é em
pregada com referência à vida física. Para facilitar a identificação da palavra alma-
psychê encontrada no texto grego, psychê será traduzida literalmente como “alma”
em lugares onde a RSV [Revísed Standard Version, em inglês] verte como “vida”.
No auge da tempestade, Paulo dá garantias aos membros da embarcação de
que “nenhuma vida se perderá” jA t 27:22; cf. 27:10). Neste contexto, o termo
grego psychê é corretamente traduzido como “vida” porque Paulo está falando a
respeito da perda de vidas. Um anjo disse a José: “Dispõe-te, toma o menino e sua
mãe, e vai para a terra de Israel; porque já morreram os que atentavam contra a
vida [psychê, “alma”, VKJ] do menino” (Mt 2:20). Hsta é uma das muitas referên
cias a buscar, matar e salvar a alma-psychê, expressões todas que sugerem que a
alma não é uma parte imortal da natureza humana, mas a própria vida física que
pode estar sob perigo. Segundo o Ancigo Testamento, a alma-psyehê é posta à
morte quando o corpo morre.
Jesus associou a alma com alimento e bebida. Disse ele: “Não andeis^ansiosos
pela vossa vida [“alma” - VKJ], quanto ao que haveis de comer ou beber; nem
pelo vosso corpo quanto ao que haveis de vestir. Não é a vida [“alma” - VKJ]
mais do que o alimento, e o corpo mais do que as vestes?” (Mt 6:25). Aqui a alma-
psychê associa-se a comida e bebida e o corpo (o exterior visível) com roupa. Ao
associar a alma com comida e bebida, Jesus mostra que a alma é o aspecto físico da
vida, embora ele explique que há mais a se cuidar na vida do que comida e bebida.
Os crentes podem elevar seus desejos e pensamentos às coisas celestiais e viver
para Cristo e para a eternidade. Assim, Cristo expandiu o significado de “alma”
por incluir a vida mais elevada, ou vida eterna, que veio oferecer à humanidade.
Permanece o fato, contudo, de que por associar a alma com comida e bebida, Cris
to revela que a alma é o aspecto físico de nossa existência e não um componente
imaterial de nossa natureza.
Imortalidade ou R essurreição?
S a l v a n d o a a l m a a o pe r d ê - la
r
No Antigo Testamento, descobrimos que a alma-nephesh é empregada fre
quentemente para denotar a incerteza da vida* constantemente defrontando a
possibilidade de ferir-se ou mesmo de destruição. Por conseguinte, os antigos is
raelitas preocupavam-se em salvar a alma, livrar a alma, restaurar a alma à se
gurança e suster a alma mediante provisões, especialmente alimento. Por isso,
nesse contexto, deve ter parecido algo paradoxal para os judeus ouvirem Cristo
dizer: “Quem quiser, pois, salvar a sua vida [psychê], perdê-la-á; e quem perder a
sua vida [psychê] por causa de mim e do evangelho, salva-la-á” (Mc 8:35; cf. Mt
16:25; 10:39; Lc 9:24; 17:33; Jo 12:25).
O impacto da declaração de Cristo sobre os judeus deve ter sido dramático,
porque ele teve a audácia de proclamar que suas almas só poderiam salvar-se por
perdê-las nesse propósito. A noção de salvar almas por perdê-las era desconhecida
para os judeus porque não se acha no Antigo Testamento. Cristo demonstrou o seu
ensino agindo num modo que culminou em sua própria crucifixão. Ele veio “dar a
sua vida [psychê] em resgate por muitos” (Mt 20:28). Como o Bom Pastor, Ele “dá
a vida [psydiê] pelas ovelhas" jjo 10:11). Ao ensinar que a fim de salvar a alma é
necessário que o indivíduo a renuncie e a perca, Cristo ampliou o sentido vetero-
! testamentário de nephesh-alma como vida física tomando-a inclusiva da vida etema
I ' 74 recebida por aqueles desejosos de sacrificar a vida presente (alma) por sua causa.
Encontramos confirmação para o sentido ampliado de alma na redação de
João da mesma declaração de Cristo: “Quem ama a sua vida [psychê], perde-a;
mas aquele que odeia a sua vida [psychê] neste mundo, preserva-la-á para a vida
eterna” (lo 12:25). A correlação entre “este mundo” e “vida eterna” indica que
alma-psychê é empregada para referir-se tanto à vida terrena quanto à vida eterna.
Na versão joanina da declaração de Cristo fica evidente que a alma não é imortal,
porque, como Edward Schweizer assinala,
doutro modo não devíamos ser instados a detestá-la. Psychê é a vida dada ao homem
por Deus e que mediante a atitude do homem para com Deus recebe seu caráter
como mortal ou eterno[...] Daí nunca lermos psychê aiorúos ou athamtos (alma eter
na ou imortal), somente psychê (alma) que é dada por Deus e mantida por Ele para
zoe aionios [vida eterna].13
O significado de alma como vida etema aparece também em, Lqç^ 21:19..
onde Cristo declara: “E na vossa perseverança que ganhareis as vossas almas”. O
contexto indica que Cristo não fala da preservação da vida terrena, porque Ele
prediz que alguns de seus seguidores serão traídos e postos à morte (v. 16). Aqui
a alma-psychê é claramente entendida como vida eterna conseguida por aqueles
dispostos a fazerem um compromisso total, sacrifical com Cristo.
A VISÁO DA NATUREZA CO HOMEM NO N O V O TESTAMENTO
A promessa de que a alma-vida será salva ao se sacrificar por Cristo demonstra
que o que Cristo tinha em vista é a vida "plena e verdadeira que Ele oferece àqueles
que o aceitam como seu salvador. A vida em Cristo não difere da vida natural por
que é experimentada por aqueles que estão livres de tentar preservá-la. E uma vida
liberta, aberta, que oferece um senso de cumprimento à vida natural. Cristo atribui
um sentido ampliado à alma que nega a noção de alma como uma entidade imate
rial ou imortal que coexiste com o corpo.
A igreja apostólica assimilou este sentido ampliado da alma como denotando
uma vida de total comprometimento com o Salvador. Judas e Silas tornaram-se
homens que “têm exposto a vida [psyche] pelo nome de nosso Senhor Jesus Cris
to” (At 15:26). Epafrodito arriscou “sua vida [psyche]” pela obra de Cristo (Fp
2:30). O próprio apóstolo Paulo testificou: “Em nada considero a vida [f>s)>cJrê]
preciosa para mím mesmo, contanto que complete a minha carreira e o ministé
rio que recebi do Senhor Jesus para testemunhar o evangelho da graça de Deus”
(At 20:24). Se Paulo cria na imortalidade da almaT é improvável que a teria vistn
como sem valor e digna de ser perdida pela causa do evangelho. Estes textos mos
tram que a igreja apostólica vivia segundo o novo sentido ampliado da alma por
viver uma vida de total comprometimento sacrifical para com Cristo. Os crentes
compreendiam que suas almas como vida física podiam
,ser salvas somente se as
consagrassem ao serviço de Cristo.
O erro mais tolo que qualquer um pode cometer é “ganhar o mundo todo e
perder a sua alma (Mc 8:36). Essa alma*psychê é a vida que transcende a
morte, o objeto primário da redenção (Hb 10:39; 13:17; Tg 1:21; IPe 1:9« 22). Apesar
de o termo “alma” ser empregado de modo consideravelmente menos ffeqüente no
Novo Testamento do que no Antigo, essas passagens-chave indicam uma significativa
expansão em seu sentido. O termo chegou a incluir o dom da vida eterna recebido por
aqueles que estão dispostos a sacrificar sua vida presente pela causa de Cristo.
Em bem poucos casos a alma-nepfies/i é empregada no Velho Testamento
para denotar a vida que transcende a morte. Um enemplo disso é o Salmo 49:15:
“Deus remirá a minFS^alma do poder da morte, pois Ele me tomará a si”. Esse
sentido de alma como vida além da morte que chega a ser ampliado no ensino de
Jesus a respeito de perder e achar a alma. A continuidade entre a vida presente e
futura é garantida, não pela residência de uma alma imortal no homem, mas pela
fidelidade de Deus que concederá vida eterna aos crentes.
A vida física e a vida eterna não são duas realidades diferentes, porque am
bas são concedidas por Deus, A alma abrange ambas porque a vida eterna é a vida
física vivida para Deus, Afinal de contas, a vida física é a única forma de existên
cia de que temos conhecimento. Mas o sentido ambivalente de alma serve para
nos recordar que a vida humana não é apenas saude e riqueza. Mas uma vida em
relacionamento com Deus.
Im o r ta lid a d e o u R essu rreiçã o?
O duplo sentido bíblico de alma como vida física e eterna nega a distinção
helenista entre corpo e alma, entre a vida do corpo na terra e a vida da alma
no céu. De um ponto de vista bíblico, a vida do corpo é a vida da alma, porque
a forma como uma pessoa vive esta vida presente determina o destino da alma
como sendo vida eterna ou destruição eterna. A alma, pois, não é uma substân
cia que sobrevive ao corpo por ocasigo da morte, mas a vida que vivemos pela
graça de Deus e que será revelada e consumada por Deus no juízo final.
A ALMA E A CARNE ( ± P € < Z : H )
Um importante texto no Novo Testamento põe a alma-ps^chê em clara
antítese com a carne'Sarx, Acha-se em_l Pedro 2:1L onde o apóstolo declara:
‘Amados, exorto-vos, como peregrinos e forasteiros que sois, a vos absterdes das
paixões carnais [sarxj que fazem guerra contra a alma [ps^c/rc]", Edward Schwi-
zer declara que este é o emprego mais helenístico de alma no Novo Testamento,
uma vez que a clara antítese entre alma-psychê e carne-sarx pode sugerir uma
composição dualística da natureza humana.
Um exame mais detido do texto, contudo, mostra que Pedro foi influenciado
nâo pelo dualismo grego, mas pelo entendimento neotestamentário de alma-nep/iesh.
No Antigo Testafhemo, descobrimos que a alma-nep/iesfi estava constantemente em
perigo e precisava ser protegida. O mesmo é verdade na admoestação de Pedro. A
diferença é que Pedro se refere a um inimigo “interno” que ataca a alma a partir de
dentro. Q inimigo são as paixões carnais que fazem guerra contra a alma levando
uma pessoa a viver somente para satisfazer os apetites físicos.
Pedro vê a alma, não como uma entidade imaterial que sobrevive ao corpo por
ocasião da morte, mas como a vida de fé santificada pela obediência à verdade reve
lada de Deus. Ele expressa este ponto de vista na mesma epístola ao dizer: “obtendo
o fim da vossa fé, a salvação das vossas almas [ps^cfié]” (IPe 1:9), “tendo purificado
as vossas almas [ps^c/ic], pela vossa obediência à verdade” (IPe 1:22). Uma vez
que a salvação da alma (vida eterna) é o resultado de uma vida de fiel obediência à
verdade, as paixões carnais ameaçam a alma (vida eterna), pois levam uma pessoa
a viver de modo infiel e em desobediência à verdade. Desse modo, a antítese entre
came e alma nesta passagem é ética e não ontológica, ou seja, é entre uma vida de
desobediência (carne) e uma de obediência (alma). Veremos logo mais que Paulo
expressa a mesma antítese contrastando a came com o espírito.
( / n r /0D e u s t e m p o d e r d e d e s t r u ir a a l m a
Esse sentido ampliado do termo alma-psychê nos ajuda a compreender uma
bem-conhecida, porém muito mal-entendida, declaração de Cristo: “Não te
mais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei antes aquele que
A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM NO NOVO TESTAMENTO
pode fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo” (Mt 10:28; cf. Lc
Os dualistas encontram neste texto apoio para o conceito de que alma é ־(12:4
uma substância imaterial que é mantida em segurança e sobrevive à morte do
corpo. Robert Morey, por exemplo, alega que
Cristo aqui [Mt 10:28] claramente diz que enquanto podemos matar ou eliminar
a vida física de um corpo, não podemos matar ou prejudicar a alma, ou seja, o eu
transcendente e imaterial, a mente ou ego. Ele emprega a dicotomia corpo/alma que
se acha por toda parte nas Escrituras.14
Essa interpretação reflete o entendimento dualístico grego da natureza hu
mana e não o ponto de vista holístico-biblico. A referência ao poder de Deus de
destruir a alma [foyche] e o corpo no inferno nega a noção de uma alma imortal,
imaterial· Como pode a alma ser imortal se Deus a destrói com o corpo no caso
3os pecadores impenitentes? Oscar Cullmann apropriadamente observa que ״ou
vimos na declaração de Jesus em Mateus 10:28 que a alma pode ser morta. A alma
não é imortal”.15
Na discussão precedente vimos que Cristo expandiu o sentido da aíma-psychê
para denotar não somente a vida física, mas também a vida eterna recebida por
aqueles que estão dispostos a assumir um compromisso sacrifical com Ele. Se este
texto for lido à luz do sentido ampliado dado por Cristo à alma, o significado da
declaração será: “Não temais aqueles que podem trazer vossa existência terrena
(corpo-soma) a um fim, mas não podem eliminar vossa vida eterna em Deus; mas
temais o Deus que é capaz de destruir vosso ser integral etemamente”.
A MORTE DA ALMA É MORTE ETERNA C l c M : % s )
A advertência de Cristo dificilmente ensina a imortalidade da alma. Antes,
declara que Deus pode destruir a alma bem como o corpo. Edward Fudge acentua
acertadamente que “a menos que Jesus esteja fazendo ameaças à toa, a própria
advertência implica que Deus executará tal sentença sobre aqueles que persisten
temente se rebelam contra sua autoridade e resistem a toda abertura de misericór
dia”.16 Fudge prossegue declarando:
A advertência de Nosso Senhor é clara, O poder do homem para matar detém-se
com o corpo e o horizonte da presente era. A morte que o homem inflige não é
final, pois Deus chamará os mortos da Terra e concederá a imortalidade aos justos.
A habilidade de Deus etn matar e destruir não conhece limites. Atinge mais profun
damente do que o físico e vai além do presente. Deus pode matar o corpo e a alma,
tanto agora quanto no além.17
Lucas reproduz a declaração de Crísto omitindo a referência à alma. “Não
temais os que matam o corpo e, depois disso, nada mais podem fazer. Eu, porém,
Im o r t a l id a d e o u R e s s u r r e iç ã o ?
vos mostrarei a quem deveis temer: Temei aquele que depois de matar, tem poder
para lançar no inferno” (Lc 12r4. 5). Lucas omite a palavra alma-ps)!ché, refe-
rindo-se, em vez disso, à pessoa integral que Deus pode destruir no inferno. E
possível que a omissão do termo “alma-psWtê” fosse intencional para impedir um
mal-entendido na mente de leitores gentios acostumados a pensar na alma como
um componente independente e imortal que sobrevive à morte. Para tomar claro
que nada sobrevive à destruição divina de uma pessoa, Lucas evita empregar o
termo “alma-psyc/iê” que podería ser confuso para seus leitores gentios.
Achamos confirmação para esta interpretação em Lucas 9:25, onde ele no
vamente omite o termo ps)׳chê-alma: “Que aproveita ao homem ganhar o mundo
inteiro, se vier a perder-se ou a causar dano a si mesmo
,[eauton]V\ Presumivel
mente, Lucas empregou aqui o pronome “ele” em lugar de dlma-psychê (também
empregado em Marcos 8:36), porque o ultimo, como Edward Schweízer sugere,
“poderia ser mal-entendido [pelos leitores gentios] como punição da alma após a׳
morte”.18 Em vez disso, *ao empregar o pronome “ele”, Lucas indica que Jesus quis
referir-se à perda da pessoa inteira.
Quando temos em mente o sentido ampliado com que Cristo usa o ter
mo “alma”, sua declaração torna-se clara. Matar o corpo significa tirar a vida
presente de sobre a Terra. Entretanto isso não mata a alma, ou seja, a vida
eterna recebida por aqueles que aceitaram a provisão da salvação de Cristo.
Tirar a vida presente significa pôr uma pessoa a dormir, porém a destruição final
ftcontecerá apenas na segunda morte, a qual, como veremos, é comparada nas.
Escrituras com o inferno.
O sentido da declaração de Cristo em Mateus 10:28 é ilustrado pelas pala
vras que usou em relação à fiíha de Jairo quando disse que ela não estava morta,
mas dormia (Mt 9:24). Ela estava de fato morta (“matar o corpo”), mas, uma vez
que iria despertar na ressurreição, podería com justiça ser tida por apenas ador
mecida, O seu destino final não havia sido ainda decidido. Do mesmo modo, uma
vez que todos os mortos serão ressuscitados no dia final, ao jazerem suas almas nas
sepulturas, ou seja, a vida que vivem por ou contra Jesus Cristo, ainda estão no
aguardo de seu destino final: salvação eterna para os crentes ou destruição eterna
do corpo e alma no inferno para os ímpios. Jesus advertiu sobre isso.
A preservação da alma no ensino de Cristo nãç é um processo automático no
noder da própria alma, mas um dom c}e Deus recebido por aqueles que estão dis
postos a sacrificarem sua alma (a vida presente) por Ele,Esse sentido expandido
de alma relaciona-se intimamente com o caráter õu personalidade de um crente.
Pessoas ou forças malignas podem matar o corpo, a vida física, mas não podem
destruir a alma, o caráter ou personalidade de um crente. Deus comprometeu-se
a preservar a individualidade, personalidade e caráter de cada crente. Por ocasião
de sua vinda, Cristo ressuscitará aqueles que morreram nele, restaurando-lhes' a
alma, isto é, seu caráter e personalidade distintos.
A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM NO NOVO TESTAMENTO
$ CatA ■*££.#9־ ALMA DE UM CORPO MORTO
. — À luz da discussão precedente, consideraremos agora outra declaração fre-
. A
qüentemente mal-interpre,tada feita por Paulo quanto a ressurreição de Eutico,
Durante uma reunião de despedida em Troas, onde Paulo falou extensamente,
um jovem chamado Êutico, após cair em sono profundo, morreu ao desabar do
terceiro andar. Em Atòs 20:10 lemos: “Descendo, porém, Paulo inclinou-se so
bre ele e, abraçando ׳ o, disse: Não vos perturbeis, que a vida nele está.”
Este, evento faz paralelo com a ocasião em que Elias (IRs 17:17) e mais
tarde Eliseti (2Rs 4:32-36) deitaram-se sobre lima criança cuja alma [nep/iesh]
a ela retornou. Os dualistas interpretam esses episódios como indicadores de
que a alma é uma entidade independente que pode retornar após deixar o
corpo, Essa interpretação é desacreditada por duas destacadas considerações.
Primeiro, no caso de Êutico, Paulo disse: “sua alma [ps^chê, VKJ] está nele”,
embora seu corpo jazesse morto, Isso significa que Paulo não cria que a alma é-
uma entidade imaterial que deixa o corpo por ocasião da morte. A alma ainda
estava em Êutico, não pelo fato de ainda não haver partido, mas porque, ao
abraçar-se com o jovem, Paulo sentiu que sua respiração estava retornando e
assim ele recobrava a vida. Ele era ainda uma álma vivente.
A
Em segundo lugar, para entender o que ocorreu no caso de Eutico e da
criança ressuscitada por Elias e Eliseu, precisamos nos lembrar de que a Bíblia
vê a morte como uma criação ao reverso. Por ocasião da criação, o homem se
torna alma vivente quando o corpo, feito de pó da terra, começa a respirar
em resultado do soprar do fôlego divino de vida em seu interior. Por ocasião
da morte, uma pessoa cessa de ser alma vivente quando o corpo dá o último
suspiro e retoma ao pó. No caso de Êutico e das crianças, a respiração deles
retornou milagrosamente e assim fizeram-se novamente almas viventes.
oP a u l o e a a l m a . * ) $ \ t õ £ € S
Em comparação com o Antigo Testamento, ou mesmo com os evangelhos, o
emprego do termo alma-psyche nos escritos de Paulo é raro. Ele emprega o termo
qpenas 13 vezes19 (incjjjindo citações do Antigo Testamento), para referir-se ao
corpo físico CRní 11 ;3; Fp 2:30; lTs 2:8). uma pessoa (Rm 2:9; 13:1), e a sede da
vida emocional (Fp 1:27; Cl 3:23; Ef 6:6) . É digno de nota que Paulo nunca em
prega ps^chê-alma para denotar a vida que sobrevive à morte. A razão poderia ser
o temor de Paulo de que o tetmo psyc/tê-alma pudesse ser entendido erradamente
pelos conversos gentios segundo o ponto de vista grego da imortalidade inata.
Para assegurar que a nova vida em Cristo seria vista inteiramente como um
dom divino, e não como uma posse inata, Paulo emprega o termo pneuma-espírito,
em lugar de psyché-alma. Mais tarde neste capítulo, examinaremos o emprego que
Im o r ta lid a d e ou R e ssu r r e iç ã o ?
Paulo faz do termo “espírito”. O apóstolo certamente reconhece uma continuida
de entre a vida presente e a ressurreição da vida, mas uma vez que ele a vê como
um dom de Deus e não como algo encontrado na natureza humana, emprega, em
vez disso, pneuma*espírito.20
Na sua famosa passagem sobre a ressurreição em 1 Coríntios 15, Paulo de
monstra que emprega alma-ps^yefe de acordo com o sentido veterotestamentário
de vida física. Ele explica que o primeiro Adão tomou-se “alma vivente” e o úl
timo Adão (Cristo) “espírito [pneuma] vivificante”. Ele aplica a mesma distin
ção à diferença entre o corpo presente e o corpo da ressurreição. Ele escreve:
“Semeía-se corpo natural [ps^cfiiícon, “físico" - VKJ] ressuscita corpo espiritual
[pneumatikon]". O presente corpo é ps^chífeon, literalmente “almoso” derivado de
ps^che-alma, denotando um organismo físico sujeito à lei do pecado e da morte. O
futuro corpo ressurretoépnewmatifcon, literalmente “espiritual”, derivado de pneu-
ma-espírito, com o sentido de um organismo controlado pelo Espírito de Deus.
O corpo ressurreto é chamado “espiritual”, não por ser não-fisíco, mas por ser
governado pelo Espírito Santo, em lugar de impulsos carnais. Isso se toma evidente
quando notamos que Paulo aplica a mesma distinção entre o natural-psycMcos e o es-
pírirua 1 -'pneumatikos para com a vida presente em 1 Coríntios 2:14, 15. Aqui, Paulo
distingue entre o homtm-psychikos natural, que não é guiado pelo Espírito de Deus, e o
homem espiritual \pneurmtikos], que é guiado pelo Espírito de Deus.
N enhuma imortalidade natural ( t co / 5 : 5 3 ' )
E evidente que para Paulo a continuidade entre o corpo atual e o futuro deve
ser encontrado não no sentido ampliado de alma que encontramos nos evange
lhos, mas no papel do Espírito de Deus, que nos renova em novidade de vida tanto
agora quanto por ocasião da ressurreição. Ao dar enfoque ao papel do Espírito,
Paulo nega a imortalidade da alma. Para ele é muito importante esclarecer que a
nova vida do crente, tanto no presente quanto no futuro, é inteiramente um dom
do Espírito de Deus. Nada há de inerentemente imortal na natureza humana.
A expressão “imortalidade da alma” não ocorre nas Escrituras. A palavra
grega comumente traduzida como “]mortalidade” em nossas versões em inglês
na Bíblia é athanasia. Tal termo ocorre somente duas vezes no Novo Testamen
to, a primeira vez em ligação com Deus, “o único que possui a imortalidade”
(ITm ,6:161. Obviamente, imortalidade aqui significa mais do que existência
infindável. Significa que Deus é a fonte de vida (]o 5:26) e todos os outros seres
recebem vida eterna dele.
A segunda vez, a palavra “imortalidade*athanasia” ocorre em.l Coríntios 15:53
e 54 em relação com a natureza moftal, que se reveste da imortalidade
,por ocasião
da ressurreição: 1
A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM NO NOVO I ESTAMENTO
Porque é necessário que este corpo corruptível se revista da incorruptibilidade, e que o ‘
corpo mortal se revista da imortalidade [athuriasúz]. E quando este corpo corruptível se
revestir de incorruptibilidade, e o que é mortal se revestir de imortalidade [athanasiã],
então se cumprirá a palavra que está escrita: Tragada foi a morte pela vitória,
Paulo não está falando da imortalidade natural da alma, mas da transfor-
mação de mortalidade para imortalidade que os crentes experimentarão quando
Cristo retornar. As implicações desta passagem são daras: a natureza humana não
é concedida com qualquer forma de imortalidade natural, porque é perecível e
mortal Á imortalidade não é uma possessão presente. Mas um dom a ser conee-
dido aos crentes por ocasião da vinda de Cristo.
Na filosofia de Platão, a alma é considerada indestrutível poraue partilha
de uma substância eterna incriada que o corpo não possui É lamentável que o
dualismo platônico cegou a mente até mesmo de grandes reformadores como C al
vino, que chegou ao ponto de dizer que ״dificilmente alguém, exceto Platão, cor׳
retamente afirmou a substância imortal [da alma]".21 Ele prossegue;
Na verdade, a partir das Escrituras temos já ensinado que a alma é uma substância in
corpórea; agora precisamos acrescentar que, embora não seja espacialmente limitada,
mas estabelecida no corpo, ali reside como numa casa; não somente animando todas
as partes e tomando seus órgãos adequados e úteis para suas ações, mas também pode
ocupar o primeiro lugar em governar a vida do homem, não somente com respeito aos
deveres de sua vida terrena, mas ao mesmo tempo despertá-lo a honrar a Deus.22
E difícil crer que um estudante tão dedicado da Bíblia como Calvino poderia
interpretar tão grosseiramente os ensinos bíblicos concernentes à natureza huma
na. Isso serve para nos lembrar quão facilmente a mente humana pode tomar-se
tão condicionada pelo erro aue deixa de discernir a verdade bíblica. Na Bíblia, a
alma não é uma "substância incorpórea e imortal”, mas vida física e regenerada,
criada e sustida por Deus e dele dependente para sua existência.
Não há qualidade inerente na natureza humana que possa tornar uma pes
soa indestrutível A esperança cristã é baseada, não na imortalidade da alma,
mas na ressurreição do corpo. Se desejarmos empregar a palavra ״imortalidade”
com referência à natureza humana, falemos não da imortalidade da alma, mas da
imortalidade do corpo (a pessoa integral) por meio da ressurreição. Apenas a res
surreição pode conceder o dom da imortalidade ao corpo, ou seja, sobre a pessoa
do crente.
A lma como aspecto mortal da natureza humana ( fc/h 5 7 ) â )
A definição paulina do corpo presente como ps^chácon-físico (literalmente “a l
moso”), ou seja, corruptível e mortal, claramente mostra que ele identifica a alma
JM UKlALlJJAUt OU ÍCtSSURREIÇAO׳
com o aspecto tísico e mortal de nossa existência humana. Isto está em harmonia
com a visão veterotestamentária da alma-nef>hesh como o aspecto físico e mortal da
vida. E evidente que a noção de imortalidade da alma acha-se totalmente ausente
dos ensinos de Paulo e da Bíblia como um todo. Mas essa definição de alma oferece
um problema. Como se pode conciliar a noção de que os seres humanos são mortais
por natureza com a declaração de Paulo em Romanos 5:12 de que a morte veio a
este mundo “pelo pecado”, e não por causa da natureza física mortal humana?
A solução para essa aparente contradição se encontra no reconhecimento de
que, como declarado por Wheeler Robinson,
Paulo concebia o homem como sendo mortal por sua natureza original, mas com a
possibilidade de imortalidade. Contudo, isto ele perdeu quando foi expulso do Éden,
e, portanto, da árvore da vida, que nutriria nele a imortalidade. Assim a morte veio
mediante o pecado.23
Paulo não explica como o homem, mediante a desobediência, perdeu a possi
bilidade de tornar-se imortal. Sua preocupação é mostrar como Cristo nos redimiu
da trágica conseqüência do pecado, a morte'. Os ensinos de Paulo, entretanto,
dão apoio ao que ele pode ter visto como duas verdades complementares: a real
mortalidade da natureza humana, por um lado, e a justiça dessa mortalidade como
penalidade pela desobediência humana, por outro.
A lma E espírito (׳ r T $ 5 : 2 3 ' k : ( *״ )
A distinção entre alma e espírito aparece em duas outras importantes pas
sagens neotestamentárias que precisamos considerar brevemente. A primeira é 1
,Tessalonicenses 5:23 e a segunda é breus 4:12. Escrevendo aos tessalonícenses,
Paulo declara: “O mesmo Deus de paz vos santifique em tudo; e o vosso espírito,
alma e corpo, sejam conservados íntegros e irrepreensíveis na vipda de nosso Se
nhor Jesus Cristo” (lTs 5:23).
Alguns apelam a este texto para defender o ponto de vista de que o homem
foi criado como um ser tripartite na criação, consistindo de um corpo, uma alma e
um espírito, cada qual como uma entidade separada. Os católicos reduzem os três
em dois, fundindo o espírito com a alma. O novo Catechism of the Cãthohc Church
[Catecismo da Igreja Católica] refere-se a este texto para explicar que “‘espírito1
significa que desde a criação o homem é disposto a um fim sobrenatural e que sua
alma pode graciosamente ser erguida acima de tudo quanto merece para comunhão
com Çeus”.24 Para os católicos, o espírito e a alma são essencialmente um, porque
é o espírito que cria cada alma como uma entidade espiritual e imortal. Como o
catecismo expõe: “A igreja ensina que toda alma espiritual é criada imediatamente
por Deus - não é ,produzida1 pelos pais - e também é imortal: não perece quando se
separa do corpo por ocasião da morte”.25
A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM NO NOVO TESTAMENTO
Esse ensino católico tradicional ignora o ponto de vista holístíco fundamental
Ja natureza humana. De acordo com a Bíblia, a alma não é uma substância imortal
que se separa do corpo por ocasião morte, mas a vida física e mortal que pode tor
nar-se imortal para aqueles que aceitam o dom de Deus da vida eterna. Tomar o Es
pírito subserviente à suposta natureza “espiritual” e imortal da alma significa ignorar
que uma função vital do Espírito de Deus é conceder vida a nossos corpos mortais:
habita em vós o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos, esse
mesmo que ressuscitou a Cristo Jesus dentre os mortos vivificará também os vossos
corpos mortais, por meio de seu Espírito que em vós habita” (Rm 8:11).
Devemos observar, primeiramente, que 1 Tessalonicenses 5:23 não e uma de
claração doutrinal, mas uma oração. Paulo ora para que os tessalonicenses possam
ser plenamente santificados e preservados irrepreensíveis até a vinda de Cristo. É
evidente que quando o apóstolo ora para que o espírito, alma e corpo dos tessalo
nicenses sejam preservados irrepreensíveis ele não está tentando dividir a natureza
humana em três partes mais do que Jesus quis dividir a natureza humana em quatro
parres quando declarou: “Amarás, pois, o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de
Gxia a tua alma, de todo o teu entendimento e de toda a tua forca” (Mc 12:30).
*Espírito, alma, e corpo״ X *TS
A chave para entender a referência de Paulo a “espírito, alma, e corpo” em
!Tessalonicenses 5:23 é o fato de que o apóstolo se dirigi a cristãos fiéis que, en
quanto ainda estão na carne (corpo), possuem duas naturezas: a natureza adâmica
eriginal recebida por ocasião do nascimento (alma) e a nova natureza espiritual
criada dentro deles pelo poder capacitador do Espírito. A natureza adâmica, como
,timos anteriormente, é chamada de “alma-ps^c/ié” e denota os vários aspectos da
vida tísica associados com a alma na Bíblia. A natureza espiritual é chamada “es
pírito” porque é o Espírito de Deus que renova e transforma a natureza humana.
O corpo é, logicamente, a parte exterior, e, por isso, visível da pessoa.
A oração de Paulo pelos tessalonicenses para manterem sua
,entre a perspectiva holística bíblica da natureza humana e sua
perspectiva realística da vida e destino humanos. Isso significa que o que cremos a
respeito da constituição de nossa natureza humana determina o que cremos sobre
nossa vida presente e destino futuro.
Os cristãos que se apegam a um ponto de vista dualístico da natureza huma-
na, que consiste de um corpo mortal e uma alma imortal que sobrevive à morte
do corpo, também acatam um tipo dualístico de vida e destino humanos. Definem
dualisticamente a vida presente, a morte, o estado dos mortos, a ressurreição, a
esperança cristã, a punição final e o mundo por vir.
O dualismo vem fomentando uma visão negativa do corpo em contraste
com o papel positivo da alma. “Salvar almas” é mais importante do que preservar
corpos. A vita contemplativa é superior à vita activa. A redenção é uma experiência
interior da alma, antes que uma transformação total da pessoa integral.
O dualismo define a morte como .separação de alma e corpo; o estado dos
mortos como de existência consciente de almas desincorporadas, seja na bem-
aventurança do paraíso ou no tormento do inferno; a ressurreição como a reli-
gação de um corpo material glorificado com uma alma espiritual; a esperança
cristã como a ascensão da alma para a bem-aventurança do paraíso; a punição
final como o tormento eterno do corpo e da alma no fogo do inferno, e o paraíso
como um retiro espiritual, celestial, onde santos espirituais glorificados passam a
eternidade em infinita contemplação e meditação.
Em contraste, os cristãos que aceitam a ponto de vista holístico bíblico da na
tureza humana, que consiste de uma unidade indivisível de corpo, alma e espírito,
também imaginam um tipo holístico de vida e destino humanos. Definem holistica-
mente a morte como a cessação da vida para a pessoa inteira-, o estado dos mortos
como o descanso da pessoa integral na sepultura até a ressurreição; a esperança
cristã fundamentada na expectativa do retorno de Cristo para ressuscitar a pessoa
inteira‘, ã punição final como o aniquilamento da pessoa completa no fogo do inferno;
o paraíso como este planeta inteiro restaurado à sua perfeição original·, e habitado
por pessoas rèais que se empenharão'em atividades reais. A posição holística bíblica
da natureza humana determina a visão realística desta vida é do mundo por vit'
M é t o d o e .e s t il o ׳; ■ ׳ .. .
. Este livro é escrito a partir de uma׳perspectiva bíblica. A Bíblia é aceita como
normativa para definir crenças e praticas cristãs. Em vista de que a$ palavras da
Bíblia contêm uma mensagem divina escrita por autores humanos que viveram,
em situações históricas específicas, todo esforço deve ser feito para compreender
seu significado em seu contexto histórico. Minhã convicção ■é a de que um: enten
dimento tanto do contexto histórico quanto literário de textos bíblicos relevantes
é indispensável para estabelecer tanto o seu sentido original quanto a sua relevân
cia presente, Esta convicção se reflete na metodologia qué segui ao examihar esses
textos bíblicos que se relacionam còm a natureza e destino hümànós.
No que diz respeito ao estilo do livro, tentei escrever numa'linguagem sim
ples e não-técnica,.Em alguns casos onde.há o emprego de uma palavra técnica,
umi definição è feita entre parênteses. Para facilitar a léitufa, cada capítulo é
dividido em pártes. principais de dèstaque, e subdivididos èm subtítulos apro
priados, Um breve sumário é dado ao final de cada capítulo. Salvo indicação di-
ferenre, todos os textos bíblicos são extraídos da edição Almeida Revista e Atu
alizada no Brasil [NiT.: desta tradução ao português!,■ Algumas pàlávras-chave
de um texto bíblico aparecem èm itálico para ênfase sem indicação especial, pois
o leitor deve estar ciente de que em Bíblias comuns não há palavras em itálico?
pREFA CIA D O R " ; ... . ’ · .
Entre os muitos: autores que li ao preparar este livro, o professor Clark H,
Pinnock destaca-se como.o,.que fez a maior contribuição para o desenvolvimento
de meus pensamentos. Pinnock é um erudito evangélico altamente.respeirado.
autot de numerosos livros e ex-presidente da Sociedade Teológica Evangélica. Seu
trabalho é louvável não.só por desafiar com incontestável argúmèntação bíblica o
ponto de vista dualístico tradicional da natureza humana e o tormento consciente
infindável do inferno,, mas também por dispor-se a defrontar Corajosamente o as
sédio daqueles evangélicos que discordam de sua posição . Há eruditos ·evangélicos
que compartilham das posições de Pinnock. mas preferem mariter suas convicções
em privado para evitar reações negativas desagradáveis. Pinnock mostrou que não
teme o desafio de enfrentar o que considera ensinos bíblicos infundados.
Im o r t a l id a d e o u R e s s u r r e iç ã o ?
Em vista dâ grande admiração que ■tenho pelo professor Clark.Pinnock, en ׳
viei-lhe um exemplar deste manuscrito em 24 de setembro de 199,7, na esperança
de que ele pudesse encontrar algum tempo para iê-lo־ e sentir-se Inclinado a escre
ver um prefácio até 30 de outubro do mesmo ano. Francamente, ■ não conservava
muita esperança de que elè atenderá áo meu pedido. Que surpresa agradável, foi
receber em 2 de outubro de 1997 um fax contendo seu gracioso prefácio. Sua
disposição em tomar tempo em sua ocupada agenda para oferecer-me este serviço
em prazo tão curto dã-me razão para ser-lhe eternamente grato.
R e c o n h e c im e n t o s '■ .
É muito difícil reconhecer o meu débito com tantas pessoas que contribu
íram para a realização deste livro. Indiretàmente, sou devedor aos eruditos que
escreveram artigos, folhetos e livros sobre diferentes aspectos da natureza e des
tino humanos. Seus escritos estimularam meu pensamento e ampliaram a minha
abordagem do assunto.
. Dire tamen te, desejo. expressar minha gratidão profunda a cerca de vinte eru
ditos e dirigentes eclesiásticos que tomaram tempo em sua ocupada agenda pára
ler este longo manuscrito, oferecendo-me valiosos comentários. Palavras são ina
dequadas pata expressar minha gratidão pelo valioso serviço prestado.
Um agradecimento especial é para Joyce Jones, da Universidade Andrews,
Jarod J. WilLiamson, da Universidade, do Sul da Califórnia, e Edwin de Kpck, ori
ginalmente da África do Sul e atualmente lecionando inglês no Texas. Cada um
deLes ofereceu significativa contribuição para corrigir e melhorar o estilo do ma
nuscrito. Eles trabalharam muitas horas reformulando sentenças para que o texto
se inclinasse mais para o inglês e menos para: o italiano.
E, por hm, mas não sem destaque, desejo expressar especial gratidão a minha
esposa que tem sido minha constante fonte de encorajamento e inspiração durante
os últimos trinta e seis anos de nossa vida matrimonial. Ela viu-me pouco enquanto
eu pesquisava e redigia este livro. Sem o.seu amor, paciência e incentivo, séria muito
difícil completar este projeto num período de tempo relativamente curto.
E x p e c t a t iv a d o a u t o r . ..
Escrevi estas páginas com o grande anseio de ajudar os cristãos de todas as con
fissões á recuperarem a perspectiva holística da natureza humana e sua visão realística
da vida e destino humanos. Numa época em que a maioria dos cristãos ainda se apega
ao entendimento tradicional dualtstico da natureza humana, uma crença quê tem
causado sério dano. à vida e pensamento cristãos, é imperativo recuperar o ponto de
vista holístico da natureza humana׳ e sua visão realística do mundo por vir.
In t r o d u ç ã o
Im o r t a l id a d e o u R e s s u r r e iç ã o ?
O holismo bíblico desafia-nos a ver positivamente tanto os aspectos físicos
quanto espirituais de nossa vida porquê nosso corpo e alma são uma unidade
indissolúvel, criados e redimidos por Deus. A forma corno tratamos nosso corpo
reflete a condição espiritual de nossa alma, porque corpo é o “templo do Espírito
Santo” (ICo 6:18). O holismo bíblico nos ensina a preocupar-nos com a pessoa
integral, buscando atender tanto as necessidades
,“alma-ps^chê” irre
preensível e íntegra para a vinda de Cristo significa que eles não deviam viver somente
gara a viiJa_fcicaiMt 6:25: At 20:24),,que é ameaçada pela morte, mas também para
îia superior e etema. que transrpnrlp a morre. a oração de Paulo
para que os tessalonicenses mantenham seus corpos saudáveis e irrepreensíveis signi׳
ca que não deviam dar satisfação “à concupiscência da carne” m ־ . 5:16) ou produzir
*as obras da came” tais como fornicação, impureza e laseíviajG l 5:19).
Finalmente, a oração de Paulo para que eles mantenham seu espírito íntegro e
*repreensível significa que seriam conduzidos pelo Espírito (G1 5:18) e produziriam
V m ito do Espírito” como amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, fidelida-
db(G15:22) . Assim, a oração de Paulo para que os tessalonicenses conservem o cor-
Im o r t a l id a d e o u R e ssu r r e iç ã o ?
po, alma e espírito íntegros e irrepreensíveis não íntenciona alistar os componentes
estruturais da natureza humana, mas realçar o estilo de vida integral daqueles que _
aguardam a vinda de Cristo. Ajdistinção entre os três é ética, e não ontológica.
O segundo texto em que o mesmo contraste aparece entre alma e espírito se**
acha em Hebreus 4:12: “Porque a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais cortante
do que qualquer espada de dois gumes, e penetra até ao ponto de dividir alma
[psychê] e espírito [pneuma], juntas e medulas, e apta para discernir os pensamen
tos e propósitos do coração”. A questão aqui é se a Palavra de Deus separa a alma
e espírito ou se penetra ambos. Edward Schweizer acertadamente observa que
“uma vez que é difícil imaginar a divisão de juntas e medulas, o texto está prova
velmente dizendo que a Palavra penetrou o pneuma [espírito] e a psyche [alma]
como o fez com juntas e medulas”.26
Tendo em mente que a alma e o espírito denotam, respectivamente, os
aspectos físicos e espirituais da vida humana, o texto declara que a Palavra de
Deus penetra e escrutiniza toda a existência humana, mesmo os mais íntimos
recessos de nosso ser. O estudo das Escrituras nos revela se nossos deseios, aspi
rações, emoções e pensamentos são inspirados pelo Espírito de Deus ou por con
siderações carnais egoístas. O texto simplesmente diz que a Palavra de Deus pe
netra-nos o íntimo de modo a trazer à luz os motivos secretos de nossas ações.
De certo modo esta passagem corre paralelamente ao que Paulo declara e m j
(^oríntios 4:5: “O Senhor... não somente trará à plena luz as coisas ocultas das tre
vas, mas também manifestará os desígnios dos corações”. Portanto, ninguém tem
razão para interpretar Hebreus 4:12 como ensinando uma distinção estrutural na
natureza humana entre a alma e o espírito.
As passagens acima que distinguem entre alma e espírito nada têm a dizer
com respeito à imortalidade da alma. Elas não sugerem que um membro do par
poderia sobreviver separado do outro por ocasião da morte, ou que se refiram a
substâncias diferentes. Pelo contrário, o papel do Esníríto de Deus como o agente
jie renovação moral nesta vida presente e da ressurreição nara a vid^ etema ao.
final nega a noção de imortalidade da alma, pois a unica imortalidade é a □ue nos
é concedida pelo Espírito de Deus ao final.
A ALMA COMO LUGAR DE SENTIMENTO E RACIOCÍNIO
A discussão fjrecedente demonstrou que o termo “alma-£s}chê” é geral
mente empregado no Novo Testamento para denotar a vida física que pode
tornar-se vida eterna quando vivida pela fé por causa de Cristo. Poucos exem
plos existem em que o termo dlmfrpsychê é usado como o centro do senti
mento e a fonte dos pensamentos e ações. Os cristãos de Antioquia estavam
perturbados com falsas instruções procedentes de pessoas que estavam “trans-
A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM NO. NOVO TESTAMENTO
tornando as vossas almas” ,(At 15:24־)» Aqui a “alma-ps^chê” refere ׳׳se à mente
dos crentes que estavam confusos por instruções desorientadoras.
Um uso semelhante do termo se acha ern João 10:24, onde os judeus
perguntam a Jesus: “Até quando nos deixarás a mente [“alma-f>s;ychê” - VKJ]
em suspenso? Se tu és o Cristo, dize ·׳o francamente.” Aqui a “á lm aj^c íiê”
é a mente com que decisões são tomadas em favor ou contra Cristo. A alma
como mente pode ser influenciada para o bem, como também para o mal.
Portanto, lemos que Paulo e Barnabé estavam em Antioquia “fortalecendo
as almas״psychê dos discípulos, exortando-os a permanecer firmes na fé” (At
14:22). Neste caso, as almas são as pessoas que eram influenciadas e movidas
em pensamento e sentimento.
Em Lucas encontramos um exemplo interessante em que “alma” refere-
se tanto, a atividades físicas quanto psíquicas. O homem rico cuja terra ha
via produzido em abundância, assim se expressou: “Então direi à minha alma
[psychê]: Tens em depósito muitos bens para muitos anos: descansa, come e
bebe, e regala-te” (12:19). Embora aqui a ênfase seja sobre o aspecto físico
da vida, tal como o comer, beber e alegrar-se, o fato de que a alma expressa
satisfação sugere uma função física. No verso seguinte, Deus pronuncia juíz
sobre tal alma satisfeita: “Mas Deus lhe disse: Louco, esta noite te pedirão a
tua alma” .(Lc 1 2 :2 0 ) . O texto sugere que a vida ou morte da alma será, por
fim, o dom ou a punição da parte de Deus.
Todos os evangelhos Sinóticos relatam a famosa declaração de Cristo
onde a alma é empregada como um perfeito paralelo do coração: “Amarás,
pois, o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o
teu entendimento e de toda a tua força” (Mc 12:30; cf. Mt 22:37; Lc 10:37). ,
Nessa declaração, citada de Deuteronômio 6:5, cada uma das palavras cora-,.^
ção, alma, mente e força é empregada para expressar o amorável comprometi-.
mento emocional e racional para com Deus. 1 ,
■·.■■.·· . ] (y . . · ־ · *.■ "· :·’ · ’■ ... .
'·v, · . . . · . · ■ . 4 ״.:· ·' . ' ................................’ ....................................·
C o n c l u s ã o J ׳ .; ׳■ ; ■;■ ·
Nossa pesquisa do emprego neotestamentário do termo “alma-f>s;ychê” indica
que não há suporte para a noção da alma como uma entidade imaterial e imortal
que sobrevive à morte do corpo. Nada há na palavra psychê-alma que mesmo re
motamente deixe implícita uma entidade consciente capaz de sobreviver à morte
do corpo. Não só deixa o Novo Testamento de endossar a noção de imortalidade
da alma, como também claramente mostra que a olm^psyche denotá a vida física,
emocional e espiritual. A alma é a pessoa como um ser vivo, com sua personali
dade, apetites, emoções e habilidades racionais♦ A alma descreve a pessoa integral
como viva e, assim, inseparável do corpo.
Im ortalidade o u R essurreição?
Descobrimos que apesar de Cristo ter expandido o sentido de alma-J)s;yc/iê
para incluir o dom da vida eterna recebida por aqueles que estão dispostos a sacrí'
ficar sua vida terrena por Ele, nunca sugeriu que a alma é uma entidade imaterial
e imortal Pelo contrário, Jesus ensinou que Deus pode destruir a alma, bem como
o corpo (Mt 10:28) dos pecadores impenitentes.
Paulo jamais emprega o termo “alma-ps^ché” para denotar a vida que so
brevive à morte. Em vez disso, ele identifica a alma com nosso organismo físico
(psjyc/iikon) que está sujeito à lei do pecado e da morte (ICo 15:44) ■ Para assegurar
que seus conversos gentios entendam que nada é inerentemente imortal na na-
tureza humana, Paulo emprega o termo “espírito-pneuma” rara descrever a nova
vida em Cristo que o crente recebg.intg.ÍTamente como um dom do Espírito de
Deus tanto agora quanto na ressurreição.
A NATUREZA HUMANA COMO ESPÍRITO
O estudo do pomo de vista neotestamentárío sobre a alma-ps^c/ié humana,
visto acima revelou como Cristo expandiu o sentido presente no Antigo Testamen
to de nephesh como vida física, para incluir também o dom da vida eterna. O que é
verdadeiro para a alma humana o é também em muitas maneiras para o espírito hu
mano. A vinda de Cristo contribuiu para revelar o sentido, e função mais amplos do
espírito■-ruach
,na redenção do homem, segundo o Antigo Testamento. O significado
de espírito -pneuma como princípio de vida é ampliado para incluir o princípio de
nova vida de regeneração moral tornada possível mediante a redenção em Cristo.
O espírito-pneuraq é emirande medida sinônimo de pyyche, sendo ambas as
palavras freqü ente mente usadas intercambiavelmente no Novo e Antigo Testamen
tos. Entretanto, parece haver uma diferença entre ambas. “Espírito” é com freqüên-
cía empregada para Deus, enquanto “alma” nunca é. usada assim. A urilimçãn das
duas palavras no geral sugere que “espírito” representa, sobretudo, a orientação de
uma pessoa no que respeita a Deus, enquanto a “alma■1 constitui a orientação de
uma pessoa para corp ns spik liantes, Definindo de modo diverso, a alma geral-
mente descreve o aspecto físico da existência humana, enquanto o espírito denota o
aspecto espiritual da existência humana (o eu interior) que traduz a relação de uma
pessoa com o mundo da eternidade. Para apreciar o sentido e função neotestamen-
tários do espírito-pneurna na natureza humana, primeiro é importante compreender
o papel do Espírito na vida e ministério de Cristo.
Cristo, o homem do ■Espírito -
O Novo Testamento em algum sentido real identifica Cristo com o Espírito na
obra da salvação. Corho o segundo Adão, Cristo tornou-se um “espírito vivificante”
A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM NO NOVO TESTAMENTO
(lCo 14:45). Portanto, o espírito de Deus toma-se o Espirito de Cristo: “enviou
Deus ao nosso coração o Espírito de seu Filho, que clama: Aba, Pai” (G1 4:6)♦ A
habilitação do “Espírito de Deus” nos crentes é vista intercambia ve Imente com o
“Espírito de Cristo” em Romanos 8:9, 10. O Espírito é tão identificado com a vida e
ministério de Cristo que Paulo pode declarar: uO Senhor é Espírito2) ״Co 3:17) , .
O Espírito que habita em Cristo também habita na pessoa que está “em Cris
to״ (Rm 8:2) . “O próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos
de Deus״ (Rm 8:16), O efeito imediato da redenção é a concessão do Espírito
que habita convosco e está em vós” {loão 14:17). O Espírito que habita num
crente não é uma alma imortal destacável, mas um poder divino que regenera a
vida presente, tornando a pessoa uma nova criatura (Rm 7:6; G1 6:8).
Cristo é o Homem do Espírito por excelência. Ele foi concebido pelo Espírito
Santo {Mt 1: 18T 20. Lc 1:35)« Em seu batismo, o espírito Santo desceu sobre Ele
na forma de uma pomba (Mc 1:10; At 10:38). Logo depois, Cristo “foi guiado peio
mesmo Espírito, no deserto” (Lc 4: T 2). No Espírito, Ele confrontou o diabo no
deserto (Mt 4:1). Mais tarde “Jesus, no poder do Espírito, regressou para a Gali-
léia״ (Lc 4:14). Em seu discurso inaugural, apresentado na sinagoga de Nazaré,
Cristo aplicou a si a predição de Isaías da unção do Messias pelo Espírito Santo:
“O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para evangelizar aos
pobres... Hoje se cumpriu a Escritura que acabais de ouvir״ (Lc 4: 18, 21). Capa
citado pelo Espírito Santo, Cristo “andou por toda parte, fazendo o bem e curando
a todos os oprimidos do diabo״ (At 10:38).
O Espírito de Deus e o espírito humano
Como o Espírito de Deus, mediado por Cristo, se relaciona com o espírito huma
no.7 Qual é a relação entre o espírito como princípio animador de vida, presente em
toda pessoa vivente, e o Espírito como princípio regenerador da vida moral ativa na
vida dos crentes7 A resposta a estas indagações se encontra no reconhecimento de que
tanto o aspecto físico quanto o moral-espiritual da vida precisam do Espírito para sua
{existência. Pelo fato de o homem ser um ser vivente animado pelo sopro do Espírito <3e
Deus que ele é capaz de receber o Espírito Santo.
No Antigo Testamento encontramos numerosos textos segundo os quais o
espíritornach é o fôlego de Deus que concede e sustém a vida humana. A mesma
função do espírito-pneuma é expressa no Novo Testamento. Por exemplo, Tiago
diz: “Porque assim como o corpo sem espírito é morto, assim também a fé sem
obras é morta״ (Tg 2:26). Semelhantemente, Apocalipse 11:11 fala do espírito-
pneuma de vida que entrou nos corpos mortos e eles reviveram e se ergueram.
Assim, todo ser humano tem o espírito transmissor de vida da patte de Deus em
si. Quando Jesus ressuscitou a filha de Jairo, “voltou-lhe o espírito, ela imediata-
Im o r t a l id a d e o u R e ss u r r e iç ã o ?
mente se levantou״ (Lc 8:55)»_lá fizemos notar que o espírito que retornou era o
fôlego de vida de Deus que fez a garota uma pessoa vivente outra vez.
O espírito como princípio da vida física finalmente chegou a significar a
fonte da vida psíquica, racional Desse modo, o termo “espírito” é empregado para
representar a sede do pensamento, sentimento e raciocínio, disposição interior ou
caráter do crente. Isso dá conta de muitos empregos do termo “espírito” tanto no
Antigo quanto no Novo Testamento.
O espírito do homem é agitado (Ez 2:2), ou perturbado (Gn 41:8); regozijasse (Lc
1:47), ou é quebrantado (Ex 6:9); prontifica ׳׳se (Mt 26:41), ou é endurecido (Dt
2:30). Um homem pode ser paciente em espírito (Ec 7:8), altivo de espírito ou pobre
de espírito (Mt 5:3). A necessidade de governar o espírito é declarada (Pv 25:28).
E o espírito do homem que busca a Deus (Is 26:9), e é ao espírito do homem que o
Espírito de Deus, habitando no íntimo, dá testemunho (Rm 8:ló).27
fs A ATIVIDADE DO ESPÍRITO NA HUMANIDADE
Sendo que o espírito^newrruz e o v e rd ad e iro ^ iy ite rio ^ ^ ^ jg ^ H ^ g ^ , é
com o espírito que um crente serve a Deus (fim 1:9). Uma pessoa com o espírito
é capaz de desfrutar comunhão com Deus (ICo 6:17). A oração e a profecia são
exercícios do espírito humano (ICo 14:32). A graça de Deus é concedida sobre o
crente na esfera do espírito (G\ 6:18). A renovação é experimentada no espírito
(Ef 4:23). Mediante o Espírito, Deus testemunha ao espírito dos crentes de que
são filhos de Deus (Rm 8:16).
Tanto os aspectos físico e psíquico da vída precisam do espírito para sua exis
tência, e assim o termo razoavelmente pode ser aplicado tanto ao princípio geral
da vida física quanto ao princípio regenerador da vida moral A nova natureza é
certamente um novo princípio de vida, mas é um princípio essencialmente da vida
moral que se manifesta numa santa disposição de caráter. E difícil estabelecer cu
exato relacionamento entre o espírito como princípio de vida e o espírito m m a
princípio regenerador da vida moral
Por exemplo, algumas passagens em Romanos 8 tornam difícil decidir se
o termo “Espírito” deve ser escrito com “E” maiusculo para designar o Espíri
to Santo, ou com um “e” minusculo quando referindo-se ao espírito humano
redimido e renovado. Talvez Paulo tencionava permítír-nos ler suas palavras
de qualquer desses modos. Os versos 5 a 9 não perdem nada de seu profundo
significado se esse intercâmbio é permitido, “Os que se inclinam para a carne
cogitam das coisas da carne; mas os que se inclinam para o Espírito, das coisas
do Espírito” (v. 5), “Vós, porém, não estais na carne, mas no Espírito, se de fato
o Espírito de Deus habita em vós” (v. 9).
A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM NO NOVO TESTAMENTO
A ligação entre os dois parece ser encontrada no fato de que o espírito que
toda pessoa possui como um princípio transmissor de vida capacita os crentes
a serem receptivos e responsivos à operação do Espírito Santo em sua vida. Em
outras palavras, é o espírito como sede da vida psíquica e racional (g^eujn tgg^ ,
com o qual Deus capacitou cada pessoa, que torna possível ao Espírito de Deus
habitar nos seres humanos. W, D. Stacey destaca este aspecto ao dizer; 'Todos
os homens têm pneuma [o espírito] desde o nascimento, mas o Imeumã [espíritol
cristão, em comunhão com o Espírito de Deus, adauire um novo caráter e uma
nova dignidade (Rm 8:10)2.״a /vASO/nâfiTTO .
O ESPÍRITO HUMANO CAPAZ DE RECEBER O ESPÍRITO DE DEUS
O espírito humano não tem poder para regenerar-׳se. Não é uma faísca di
vina que pode ser
,avivada como uma chama de fogo. Antes, é uma capacidade
que Deus concedeu a toda pessoa para experimentar o poder regenerador de seu
Espírito. Quando uma pessoa é nascida de novo pelo Espírito de Deus, sua natu
reza “natural” (psycfw/cos) torna-se “espiritual” (pneumatikos) (lCo 2:14» 15).
O espírito humano que é obediente a Deus experimenta o poder do Espírito
de Deus que guia e transforma. A comunhão com Deus é alcançada pelo espírito
humano mediante o Espírito de Deus, Claude Tresmontant descreve essa função
do espírito ■־pneuma:
O espírito da homem, seu pneuma, é aquilo que dentro dele lhe permite um encontro
com o Pneuma [Espírito] de Deus. E a parte de um homem que pode entrar em diá
logo com o Espírito de Deus, não como um estranho, mas como um filho; ‘O próprio
Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus’ (Rm 8:16).29
O espírito humano capacita uma pessoa a servir a Deus: “Porque Deus, a
quem sirvo em meu espírito-pneuma, no evangelho de seu F i l h o . . (Rm 1:9). A
sentença “sirvo em meu espírito” sugere que o espírito é uma capacidade mental e
volitiva que capacita uma pessoa a servir a Deus. Poderíamos dizer que o espírito
humano foi designado por Deus para unir-se com o Espírito Santo. Em razão de o
homem ser espírito-pneuma, um ser vivo animado pelo fôlego do Espírito de Deus
(ruach'pneuma), que é capaz de receber o Espírito-pneuma Santo e assim chegar a
um relacionamento íntimo e vivo com Deus.
Henry Barclay Swete explica a orientação humana para com o Espírito Santo:
O Espírito Santo não cria o ‘espírito’ no homem; está potencialmente presente em
todo homem, mesmo se mdimentarmente e nãodesenvolvido. Todo ser humano
tem afinidades com o espiritual e eterno. Em cada indivíduo da raça o espírito do
homem que está nele (lCo 2:11) responde ao Espírito de Deus, na medida em que o fi
nito pode corresponder-se com o infinito... Mas embora o Espírito de Deus encontre
Im o r ta lid a d e o u R essu r r eiç ã o ?
no homem uma natureza espiritual em que pode operar, o espírito humano se acha
numa condição tão imperfeita e ־depravada que uma completa renovação, mesmo
recriação, se faz necessária (2Co 5;17h3Q
Permitir ao Espírito de Deus renovar e transformar nossa vida não é renunciar
à nossa própria personalidade, mas trazê-la submissa. Em harmonia com o Antigo.
Testamento, o Novo Testamento vê a natureza humana holisticamente, onde o cor
po, alma e espírito são partes integrais do mesmo sej. O espírito é uma força, insepa
rável do fôlego e da vida (Lc 8:55; 23:46) que renova a mente (Ef 4:23) e capacita
uma pessoa a tornar-se uma nova criatura, “e vos revistais do novo homem, criado
segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade ”.(Ef 4:24).
O ESPÍRITO COMO RENASCIMENTO ESPIRITUAL
O Espírito de Deus é o agente ativo da criação e recriação. Vimos que
no Antigo Testamento a criação do homem é atribuída ao Espírito de Deus. O
homem existe como alma vivente por causa do fôlego de Deus (Gn 2:7). A re
criação na ordem moral é também a obra do Espírito. Somos lembrados da visão
dos ossos secos de Ezequiel que retornaram à existência mediante o Espírito de
Deus. Os ossos secos representam 4*toda a casa de Israel״ (Ez 37:14) que em sua
condição foi trazida de volta à vida, ou seja, ao renascimento espiritual pelo
Espírito de Deus: “Porei em vós o meu Espírito, e vivereis, e vos estabelecerei
na vossa própria terra. Então sabereis que eu, o Senhor, disse isco, e o fiz, diz o
Senhor” (Ez 37:14b
No Novo Testamento, há uma descrição mas completa acerca da trans
formação morai realizada pelo Espírito Santo do que no Antigo Testamento,
de modo especial nos escritos de João e Paulo. Os dois apóstolos descrevem
este processo em formas diferentes, contudo, complementares. João concebe
a transformação moral interior como renascimento e Paulo como nova criação.
As duas metáforas, como veremos, são complementares, cada uma designada a
ajudar-nos a compreender a nova vida operada pelo Espírito Santo.
No Evangelho de João, Jesus compara a transformação moral realizada pelo
Espírito Santo a um renascimento. Faiando a Nicodemos, Jesus diz: “Em verda
de, em verdade te digo: Quem não nascer da água e do Espírito, não pode entrar
no reino de Deus” (Jo 3:5). Ser nascido do Espírito é contrastado com ser nasci
do da carne: “O que é nascido da carne, é carne; e o que é nascido do Espírito, é
espírito” {Jo 3:6). O nascimento físico está de acordo com a carne (Jcata sarfca),
colocando uma pessoa num nível horizontal de existência natural. O nascimen
to espiritual é “de cima” (Jo 3:3) pelo Espírito, colocando uma pessoa num nível
vertical de existência pelo poder habüitador do Espírito.
A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM N O N O V O TESTAMENTO
Na noite de sua ressurreição Jesus ״soprou sobre eles [os discípulos], e disse׳
lhes: Recebei o Espírito Santo” (Jo 20:22). Essa ação, que assinalou a recriação
dos discípulos, faz paralelo à primeira criação do homem, quando Deus soprou-lhe
o fôlego de vida, A criação e recriação, nascimento e renascimento, são atos do
Espírito, porque, como Jesus explicou, ״espírito é o que vivifica” (Jo 6:63). Isto é
verdade tanto no que tange à vida física quanto espiritual.
O Espírito é a fonte imediata de vida mediada por Cristo.
Se alguém tem sede, venha a mim e beba, Quem crer em mim, como diz a Escritu
ra, de seu interior fluirão rios de água viva. Isto ele disse com respeito ao Espírito
que haviam de receber os que nele cressem; pois o Espírito até esse momento não
fora dado, porque Jesus não havia sido ainda glorificado (Jo 7:3739״).
Cristo é a fonte meritória do Espírito, pois mediante seu sacrifício expiató
rio Ele pode conceder seu Espírito transmissor de vida ao crente. E por isso que
Paulo fala do “Espírito da vida em Cristo Jesus te livrou da lei do pecado e da
morte” (Rm 8:2).
Sumariando, podemos dizer que embora João não mencione o espírito do ho
mem como tal, ele o visualiza como cumprido e realizado pelo Espírito mediante o
qual Cristo concede nova vida, um renascimento espiritual, ao crente. Em certo
sentido, o significado último do íôlego de Deus como fonte de vida física é revelado
e cumprido na nova vida, tornada possível pelo “Espírito de vida em Cristo Jesus”
(Rm 8:2). Em parte alguma João identifica o Espírito transmissor de vida com uma
alma imaterial, imortal, capaz de destacar-se do corpo. A função do espírito é sim
plesmente operar um renascimento espiritual, isto é, uma transformação moral da
pessoa inteira do crente. Em João não há dualismo entre um corpo material, mortal,
e uma alma espiritual, imortal, porque o Espírito traz vida nova à pessoa integral.
O ESPÍRITO COMO NOVA CRIAÇÃO
Paulo descreve a transformação moral realizada pelo Espírito, não como
um renascimento, mas como uma “nova criação” (2Co 5:17; cf. ICo 6:11; GI
3:27; 6:15; Et 4:24)* As duas metáforas cobrem essencialmente a mesma idéia.
Paulo atribui importância vital ao papel do Espírito na vida do crente. Isto é
indicado pelo fato de que em suas cartas ele se refere ao espírito 146 vezes, em
%1— ־—־ — ‘ — ■ ■ ■» ■ * ■ ■ ■■■*■ ■ ■ ■ I ■ *■ ■ ■ ■■■ 1■ ^
comparação com somente 13 referências à alrna^Wheeler Robinson correta
mente afirma que pneürna-espírito é “a palavra mais importante no vocabulário
psicológico de Paulo, talvez em seu vocabulário como um todo”,31 A razão é que
Paulo se preocupa em mostrar que salvação é exclusivamente um divino dom de
graça mediado pelo “Espírito de vida em Cristo Jesus” (Rm 8:2), e não a posse
natural de uma alma imortal.
Im oktaudalje o u R essu rreiçã o?
Salvação não é a remoção do espírito ou da alma do corpo ou do mundo em que
o corpo vive, mas uma renovação do corpo mediante o poder capacitador do Espírito.
Portanto, a descrição de Paulo da vida cristã é em grande medida feita em termos
do poder capacitador do Espírito para o crente viver segundo a vontade revelada de
Deus. O apóstolo explica que Cristo veio “a fim
,de que o preceito da lei se cumprisse
em nós que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito” ]׳Rn: 8:4).
Andar segundo o Espírito significa pôr a mente nas “coisas do Espírito” {Rm
8:5), ou seja, viver em conformidade com os princípios de vida que Deus revelou, em
vez de sê-lo de acordo com os desejos da carne. “Andai no Espírito, e jamais satisfareis
à concupiscência da carne” (GET 16). Caminhar segundo a came (kata sarka) sigiii-
fica cumprir “as obras da carne” tais como “prostituição, impureza, lascívia, idolatria,
feitiçarias, inimizades, porfias, ciúmes, iras, discórdias, dissensões, facções, invejas, be
bedices. glutonarias, e cousas semelhantes a estas, a respeito das quais eu vos declaro,
como já ou trota vos preveni, que não herdarão o reino de Deus os que tais cousa prati
cam” (GL 5 :19. 20). Em contraste, caminhar segundo o espírito (kata fmcumu) signifi
ca produzir “o fruto do Espírito”, representado por “amor, alegria, paz, longanimidade,
benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio” (Cl 5:22, 23).
Os efeitos da nova criação exercidos na vida do crente pelo Espírito Santo são
manifestos especialmente num relacionamento de filiação; numa fé e esperança inaba
láveis; num ardente amor pelos irmãos; e num ousado testemunho por Cristo. Mediante
o Espírito, tomamo-nos membros da família de Deus. “E porque vós sois filhos, enviou
Deus aos nossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: Aba, Pai” (QLi!6).
O Espírito instila no crente fé e esperança em Cristo. “E o Deus da esperança
vos encha de todo o gozo e paz no vosso crer, para que sejais ricos de esperança
no poder do Espírito Santo” (Rm 15:13; cf, G1 3:14; 5:5). A nova vida do Espírito
é manifesta especialmente no espírito de amor fraternal que flui de Cristo para a
vida do crente. “Ora, a esperança não confunde, porque o amor de Deus é der
ramado em nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi outorgado” ]Rm 5:5;
ct. 15:30; Cl 1 :8 ; 2 Co 6 :6.)., O Espírito comunica força para sofrer por causa de
Cristo. “Se, pelo nome de Cristo, sois injuriados, bem-aventurados sois, porque
sobre vós repousa o Espírito da glória e de Deus” QPe,4;14K
Finalniente, o Espírito é a miraculosa força comunicadora de vida da ter
ceira pessoa da Divindade, que operará a ressurreição do corpo. “Se habita em
vós o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos, esse mesmo que
ressuscitou a Cristo Jesus dentre os mortos vivificará também os vossos corpos
mortais por meio de seu Espírito que em vós habita” (Rm 8:11; cf. íCo 6:14;
.2Cq.3.í6jl.QJ.6;8). Tal como o Espírito esteve em operação na primeira criação
(Gn 2:7), assim estará na ressurreição final No capítulo 4 veremos que a Bí
blia em parte alguma sugere que o corpo ressuscitado será religado a uma alma
desincorporada. Em vez disso, a Bíblia ensina que este corpo terreno será res-
A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM NO NOVO TESTAMENTO
suscitado num wcorpo espiritual-bneumatikoC׳ (ICo 15:44), ou seja, uma pessoa
inteiramente dominada pela força-vital do espírito divino.
A CARNE E O ESPÍRITO
O contraste que Paulo faz entre a carne e o Espírito leva muitos a crer que
o apóstolo distingue entre o corpo material, mortal e a alma imortal, espiritu
al.32 Essa interpretação ignora o fato de que a antítese paulina entre a carne e
o espírito não é uma dualidade de substâncias metafísicas, mas um contraste de
orientação ética-religiosa.
O contraste mais acentuado entre carne e espírito acha-se na primeira parte
de Romanos 8· A q u i Paulo contrasta destacadamente os que vivem “segundo a
carne” com os que vivem “segundo o Espírito״. “Porque os que se inclinam para
a carne cogitam das coisas da carne; mas os que se inclinam para o Espírito, das
coisas do Espírito. Porque o pendor da carne dá para a morte, mas o do Espírito,
para a vida e paz” (Rm 8:5. 6),
A primeira coisa a assinalar nesta e em passagens semelhantes (G1 5:16-26) é
que Paulo nunca emprega as palavras gregas para “corpo״ e “alma” (soma e ps^c/ié).
Em vez disso, ele sempre emprega um conjunto diferente de termos, como sarx e
pneuma, traduzidos como “carne” e “espírito”. Se Paulo tivesse em mente realçar a
distinção entre o corpo mortal e a alma imortal, ele teria usado as palavras gregas
soma (corpo) e psychê (alma) que eram padrão na doutrina dualística grega. Mas o
que Paulo rinha em mente era algo inteiramente diferente, por isso, empregou um
conjunto diferente de palavras para expressá-lo.
Não pode haver dúvida de que para Paulo “a carne” e “o Espírito” represen
tam, não duas partes separadas e opostas da natureza humana, mas duas diferentes
orientações éticas, Isso se faz claro quando se compara a lista de “obras da came”
(G1 5:19, 20) com o “fruto do Espírito” (G1 5:22, 23). Aqui novamente as duas
listas mostram que “carne” e “Espírito” representam não duas partes separadas e
opostas da natureza humana, mas dois tipos diferentes de estilo de vida. Os peca
dos atribuídos à carne, tais como “idolatria, feitiçarias, inimizades, porfias, ciúmes,
iras, discórdias, dissensões, facções, invejas” nada têm a ver com impulsos físicos.
“Poderíam muito bem ser praticados por um espírito desíncorporado".33
Charles Davis claramente expõe o significado bíblico de came e espírito, dizendo.
Ele [Paulo] é plenam ente hebreu em sua cosmovisão; ele via o hom em simplesmente
com o uma unidade. Consequentem ente, sua antítese de cam e (sarx) e espírito (pneu
ma) não constitui uma oposição entre matéria e espírito, entre corpo e alma. Gam e"
não é parte do homem. Mas o hom em integral em sua fraqueza e mortalidade, em seu
distanciam ento de Deus, em sua solidariedade com a criação corrupta e pecaminosa.
‘Espírito' é o hom em como aberto à vida divina e com o pertencendo à esfera do divino,
Im ortalidade o u R essurreição?
ou seja, o homem sob a influência e atividade do Espírito. Carne e espirito são dois
princípios ativos que afetam o homem e estão em luta dentro dele.34
Numa linha semelhante de pensamento, George Eldon Ladd escreve que
׳ carne” refere״ se ao homem
como um todo, visto em suas falhas, oposto a Deus, Esse emprego é um desenvolvi
mento natural do emprego veterotestamentário de basar [came], que é o homem visto
em sua fragilidade e fraqueza perante Deus. Quando isto é aplicado ao reino ético,
torna׳ se o homem em sua fraqueza ética, isto é, a pecamínosidade perante Deus. Sarx
[carne] representa não uma parte do homem, mas o homem como um todo - não
regenerado, caído, pecaminoso.35
Came e Espírito representam respectivamente o poder da morte e o poder
da vida que podem operar dentro de uma pessoa. Oscar Cullmann oferece esta
ilumínadora comparação entre ambas:
‘C arne’ é o poder do pecado ou o poder da m orte. Abrange o homem exterior e iiv
terior conjuntam ente. Espírito (pneuma) é o seu grande antagonista: carne e espírito
são poderes ativos, e como tal operam dentro de nós. A carne, o poder da morte,
entrou no homem com o pecado de Adão. Entrou no homem, completo, interior
e exterior, de tal modo que está bem intim am ente ligado com o corpo. O homem
interior acha׳ se menos ligado à carne; embora m ediante a culpa este poder da morte
tenha se apossado mais e mais do homem interior. O espirito, por outro lado, é o
grande poder de vida, o elem ento da ressurreição; o poder de Deus da criação nos é
dado mediante o Espírito Santo.30
O poder animador do Espírito Santo é manifesto nesta vida presente em
nosso “homem interior [que] se renova de dia em dia” (2Co 4:16) pelo poder
transformador do Espírito (Ef 4:23, 24).
A CARNE COMO NATUREZA HUMANA PECAMINOSA
A carne -sarx representa a natureza humana não ׳ regenerada, pecaminosa,
mas não porque o pecado reside na natureza humana do corpo, em vez de sê׳ lo
na natureza “espiritual” da alma. Afinal de contas, o corpo de came é o templo
do Espírito (ICo 6;9h um membro de Cristo (ICo 6:1.5)f e um meio de glorificar
a Deus (ICo 6:20j, A razão por que a carne-sarx
,representa a natureza humana
caída e pecaminosa é que ela representa a fragilidade humana que pode tornar׳ se
um instrumento do pecado.
O sentido de “carne” como significando “mundo” é ambivalente em Paulo
e na Bíblia em geral. A carne e o mundo como criados por Deus para que a
humanidade os desfrute apropriadamente, são bons (Gn 1:18, 2. 2 *>4 ^1)· Mas
A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM NO NOVO TESTAMENTO
quando a carne e o mundo negam sua condição de coisas criadas por Deus e
contra Ele se rebelam reivindicando independência e auto-suficiência, então
tornam-se maus. E nesse sentido que carne (natureza carnal) e mundanismo
são sinônimos de pecaminosidade. Poderíamos dizer que “a carne-sarx” é neutra
quando se refere à vida de uma pessoa no mundo, mas designa a oecamínosi-
dade quando descreve uma pessoa vivendo para o mundo e permitindo que o
mundo governe toda sua vida e conduta.
E evidente, portanto, que a antítese entre “a carne” e “o Espírito” nada tem
a ver com o dualismo corpo-alma. À carne por si mesma não representa a parte
da natureza humana (o corpo) que se alega ser má, e o espírito não representa a
parte da natureza humana que supostamente é boa (a alma). Quando empregadas
numa forma negativa, ila carne” significa o tipo de pessoa em quem a vida inteira,
tanto física quanto psíquica, está fora do rumo, centralizada sobre o eu, antes que
sobre Deus. Semelhantemente, “o espírito” representa não meramente a parte
espiritual da natureza humana, mas o tipo de pessoa em quem a vida integral,
tanto física quanto psíquica, é dirigida a Deus antes que ao eu. O contraste entre
“carne” e ”espírito” é ético, não ontológico.
E lamentável que muitos entendam Paulo de maneira errônea neste ponto.
A razão para isto é a falha em entender que para Paulo, e para a Bíblia como um
todo, o que corrompe uma pessoa não é o corpo ou a carne, mas o pecado. A car
ne pode tornar-se um instrumento do pecado, e como tal afeta o corpo e a alma,
tal como sua contrapartida, o Espírito, transforma o corpo e a alma.37 “O inimigo
derradeiro do Espírito de Deus não é a carne, mas o pecado, do qual a carne se
tomou o instrumento fraco e corrupto”.38
Conclusão
Nosso estudo do emprego neo testamentario do termo “espírito-pneumfl” re
velou que o espírito, à semelhança da alma, não é um componente espiritual inde
pendente da natureza humana que opera à parte do corpo. Pelo contrário, o espíri
to é o princípio de vida que anima o corpo físico e regenera a pessoa integral.
Descobrimos que o significado e função do Espírito expandem-se com a vinda
de Cristo, que é identificado com o Espírito na obra da salvação. O significado do
espírito-fjneumn como um princípio de vida é expandido para incluir o novo princí
pio de vida de regeneração moral, tomado possível mediante a redenção de Cristo.
O Espírito sustém tanto os aspectos da vida física quanto moral-espiritual
A transformação moral realizada pelo Espírito Santo é descrita mais plena -
mente no Novo Testamento do que no Antigo Testamento. João e Paulo descrevem
este processo com duas metáforas diferentes, contudo complementares. João conce
be a transformação moral interior como renascimento; Paulo, como nova criação,
Im ortalidade o u R essurreição?
O “Espírito-jfffieuma” é a palavra mais importante do vocabulário de Paulo por׳
que serve para mostrar que a salvação é exclusivamente um dom divino de graça
mediado pelo “Espírito de vida em Cristo Jesus״ {Rm 8:2), e não a posse natural de
uma alma imortal Em parte alguma o Novo Testamento identifica o Espírito comu
nicador de vida com uma alma imaterial, imortal, capaz de separar-se do corpo.
A função do Espírito não é suster uma alma imortal, espiritual, mas suster
tanto a vida física quanto espiritual Tanto a criação quanto a recriação, nasci
mento e renascimento, são ações do Espírito, porque, como Jesus explicou, “é o
Espírito que dá vida’ (Jo 6:63).
A antítese paulina entre “a came״ e “o Espírito” nada tem a ver com o dua
lismo corpo-alma. Os dois não representam partes separadas e opostas da nature
za humana, mas duas orientações éticas diferentes de uma pessoa; viver uma vida
centralizada no eu versws viver uma vida centralizada em Deus. ,Em suma, pode
mos dizer que o espírito, à semelhança da alma, corresponde, não uma entidade
separada da natureza humana, mas um aspecto da totalidade dessa natureza.
A NATUREZA HUMANA COMO CORPO
O sentido de corpo-soma ou de carne-sarx no Novo Testamento é seme
lhante ao das palavras correspondentes do Antigo Testamento (corpo-geviyyah e
carne-bas/tar), examinadas no capítulo anterior. Em seu emprego literal, o termo
“corpo״ descreve a realidade concreta da vida humana que consiste de carne e
sangue. No Novo Testamento, contudo, “corpo-sorna” é geralmente empregado
num sentido figurado para denotar a pessoa como um todo (Rm 6 ; 12; Hb 10:5),
a natureza humana corrupta (Rm 6:12; 8:11; 2Co 4:11), a igreja como o corpo de
Cristo (Ef 1:23; Ci 1:24), o corpo ressurreto dos remidos (lCo 15:44), e a presen
ça espiritual de Cristo simbolizada pelo pão e vinho (lCo 11:27). Para o propósito
de nossa investigação, focalizamos primariamente na perspectiva neotestamentá-
ria do corpo humano em relação à pessoa total
Cristo e o corpo humano
Para apreciar a consideração positiva do Novo Testamento acerca do corpo
humano, precisamos refletir sobre sua doutrina central da encarnação. Por exemplo,
o evangelho de João anuncia no início que o eterno Filho de Deus “se fez came e
habitou entre nós” (Jo 1:14). A própria ídéia de que o eterno Filho de Deus entrou
no tempo e espaço humanos e assumiu uma natureza humana plena, incluindo um
corpo, era incompreensível para a mente grega. De fato, o gnosticismo, um influente
movimento sectário cristão, influenciado pelo dualismo grego, rejeitava abertamen-
A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM NO NOVO TESTAMENTO
te a e n ca rn a çã o de C risto . Isso ilu stra v igorosam ente a d ife rença e n tre a visão b íb li
ca ho lística d a n a tu reza h u m a n a , q u e dá valor ao corpo, e a v isão d ua lís tica grega,
que considera o co rpo co m o a prisão d a a lm a a ser d esca rtad a co m a m orte .
Qualquer pessoa que aceite plenamente a doutrina neotestamentária da en
carnação nunca pode acusar os escritores do Novo Testamento de denegrir o corpo
humano ou a ordem física. O fato de que o divino Filho de Deus assumiu um corpo
humano a fim de viver sobre a Terra comunica dignidade e importância ao corpo e
a todo o reino físico.
É também significativo observar que o mesmo Verbo eterno mediante o qual
tudo o “que foi feito se fez” (Jo 1:3) por ocasião da criação veio ao mundo para redi
mir e restaurar não só a “alma”, mas o homem integral e o mundo inteiro.
Este é o significado da estranha doutrina de ressurreição do corpo, a qual, mais do
que qualquer outra coLsa, horrorizava e causava repugnância no m undo grego. Esta
doutrina servia para realçar, na forma mais vigorosa possível, o ponto de vista do Novo
Testam ento de que não é alguma parte do homem (sua “alma1' racional) que se destina
à eternidade, mas a pessoa integral que tem o seu lugar no propósito de DeusV
A doutrina da ressurreição do corpo, que será examinada no capítulo 7, ensina
que nossa natureza física e o mundo material, que desempenham um papel vital
em moldar nossa existência terrena, têm significação eterna no divino esquema de
coisas. Isto nos ensina, como Ronald Hall acertadamente diz, que
mesmo no além -túmulo, o corpo não é um mero adorno do espírito, mas um elem en
to essencial no ser de uma pessoa. Sena difícil entender por que Paulo centralizava a
fé na crença da ressurreição se ele tivesse outra idéia. Se ele pensasse, por exemplo,
que a salvação tivesse que ver somente com uma alma desincorporada liberta do
corpo, certam ente não teria insistido tan to no tema da ressurreição do corpo; ele
teria se contentado com a noção grega de uma alma im ortal.40
A ressurreição
,pela encarnação de
Cristo que tomou um corpo humano a fim cumprir Sua missão redentora sobre a Ter
ra. A encarnação de Cristo num corpo humano e Sua ressurreição num corpo glorifi
cado (]o 20:27) nos falam que o corpo tem significação eterna no propósito redentor
e criativo de Deus. Isso é confirmado pela ressurreição do corpo, o que nos fala que
mesmo na nova terra, o corpo será uma parte essencial da existência humana.
Figuradamente, o corpo é empregado no Novo Testamento numa fonna ambi
valente. Por um lado, pode tomar׳se um “corpo do pecado” (Rm 6:6) e o “corpo desta
morte” (Rm 7:24), quando se toma um instrumento do pecado. Por outro lado, pode
tomar-se o templo do Espírito Santo (ICo 6:19) e o meio de glorificar a Deus (ICo
6:20), quando se toma um instrumento no serviço de Cristo. A redenção significa,
não a remoção da alma do corpo, mas a renovação do corpo (a pessoa inteira) nesta
vida presente e a ressurreição do corpo (a pessoa inteira) no mundo por vir.
A NATUREZA HUMANA COMO CORAÇÃO
O coração*■kardia no Novo Testamento é empregado com a mesma ampla
gama de sentidos que encontramos no Antigo Testamento (leb e lebab). Não pre-
A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM NO NOVO TESTAMENTO
cisamos delongar-nos no estudo do significado e empregos do termo coração no
Novo Testamento. Essencialmenté, o coração-kardia representa a vida interior
integral de uma pessoa em seus vários aspectos. Denota, como no caso de espírito,
o centro emocional, intelectual e espiritual de uma pessoa. O fato de que o “cora
ção’1 e o “espírito” são empregados numa maneira semelhante mostra novamente
o ponto de vista holístico bíblico da natureza humana, onde uma parte da nature
za humana pode ser empregada com referência à pessoa integral.
O CORAÇÃO É A SEDE DAS EMOÇÕES
Tanto as boas quanto as más emoções brotam do coração. O coração sente
alegria (Jo 16:22; At 2:26; 14:17), temor (Jo 14:1), sofrimento (]o 16:6; 2Co 2:4),
amor (2Co 7:3; 6:11; Fp 1:7), cupidez (Rm 1:24), anseio (Rm 10:1; Lc 24:32), e
desejo (Rm 1:24; Mt 5:28; Tg 3:14). Paulo expressou o desejo de seu coração pela
conversão de seus irmãos judeus (Rm 10:1). Ele escreveu aos coríntios com “an
gústia de coração” (2Co 2:4). Instou os coríntios a abrir o coração para recebê-lo
e a seus companheiros em amor (2Co 7:2).
O CORAÇÃO É A SEDE DA ATIVIDADE INTELECTUAL
Jesus disse que “Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino
dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus” (Mc 7 :2 1 ) e
“Raça de víboras, como podeis falar cousas boas, sendo maus? Porque a boca fala
do que está cheio o coração” (Mt 12:34). Paulo exorta todo homem a dar liberal
mente “como propôs em seu coração” (2Co 9:7). Os “olhos do coração” devem ser
iluminados (Efé 1:8) para entender a esperança cristã. As decisões têm sua origem
no coração (Lc 21:14; At 11:23).
As vezes, é Deus quem influencia a decisão dos corações humanos: “Porque
em seus corações incutiu Deus que realizem o seu pensamento, o executem à uma
e dêem a esta o reino que possuem, até que se cumpram as palavras de Deus” (Ap
17:17). As vezes, é o diabo quem o faz: “Durante a ceia, tendo já o diabo posto no
coração de judas Iscaríotes, filho de Simão, que traísse a Jesus...” (Jo 13:2). Outras
vezes, o coração é sinônimo de consciência: “Amados, se o coração não nos acusar,
temos confiança diante de Deus” (ljo 3:21). Os gentios possuem uma lei, escrita em
seus corações que os capacita a distinguirem entre o bem e o mal (Rm 2:14, 15).
O CORAÇÃO COMO SEDE DA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
Deus se comunica com uma pessoa no coração. Ele pesquisa o coração hu
mano e o põe à prova (Lc 16; 15; Rm 8:27; ITs 2:4). Deus escreve a sua lei no
coração humano (Rm 2:15; 2Co 3:2; Hb 8:10). Ele abre o coração humano (Lc
Im ortalidade o u Ressurreição?
24;45; At 16:14). Ele resplandece em nossos corações para nos dar luz do co
nhecimento de Jesus Cristo (2Co 4:6). A paz de Deus mantém nossos corações e
mentes em Cristo (Fp 4:7). O Espírito de Deus é derramado em nossos cotações
(Rm 5:5; 2Co 1:22; G14:6).
Cristo habita o nosso coração e nele atua por meio da fé (Et 4: 7, 18). O
coração cristão é purificado e santificado mediante a té e o batismo (At 15:9;
Hb 10:22). O coração é purificado (Mt 5:8) e fortalecido por Deus (lTs. 3:13).
A paz de Cristo pode reinar no coração (Cl 3:15). O coração recebe as primícias
do Espírito (2Co 1:22).
Virtudes cristãs são atribuídas ao coração. O amor é associado com o coração
(2Ts 3:5; IPe 1:22). A obediência se liga ao coração (Rm 6:17; Cl 3:22). O perdão
deriva do coração (Mt 18:35). A gratidão reside no coração (Cl 3:16). A paz de
Deus habita no coração (Fp 4:7). Acima de tudo, o amor por Deus e pelo seme
lhante procede do coração (Mc 12:30 e 31; Lc 10:27; Mt 22:37-39).
Os exemplos de textos há pouco citados indicam claramente que a palavra
coração” é empregada para descrever a vida interior da pessoa total. Isso leva״
Karl Bar th a concluir que ״o coração não é meramente uma parte, mas a realidade
do homem, tanto integralmente da alma, quanto integralmente do corpo”.44 O
fato de que o coração representa a vida interiot total de uma pessoa em grande
parte como também se dá com o espírito, revela novamente a perspectiva holisti־׳
ca bíblica da natureza humana.
A visão dualística que atribuí as funções morais e espirituais da natureza
humana à alma é desacreditada pelo fato de que tais funções são igualmente atri
buídas ao coração e ao espírito. Isso é possível porque, como vimos, na Bíblia a
natureza é uma unidade indissolúvel e não uma composição de diferentes peças .
A visão holística bíblica da natureza humana nega a possibilidade de que a alma
exista e atue como uma entidade distinta, imaterial à parte do corpo.
Apoio de eruditos para o ponto de vista holístico
Como um breve apêndice à nossa pesquisa do ponto de vista bíblico da
natureza humana, cito, como exemplos, alguns dos numerosos eruditos de
diferentes persuasões que apoiam o ponto de vísta holístico bíblico, que nega
a crença na imortalidade da alma.45
Em vários de seus livros, Wiüiam Temple, arcebispo de Canterbury, afirma
o ponto de vista holísnco-bíblico da natureza humana e declara ser “antibíbli-
ca a noção da indestrutibilidade natural da alma individual46.״ Ele escreveu:
“O homem não é imortal por natureza ou direito, mas é capaz da imortalidade;
a ele é oferecida a ressurreição dos mortos e também a vida eterna, se ele de
sejar recebê-la de Deus e nos termos de Deus”.47
A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM NO NOVO TESTAMENTO
Na “Conferência Ingersoll sobre a imortalidade do homem”, apresentada
na Capela Andover da Universidade Harvard, o teólogo suíço Oscar Cullmann
acentuou a diferença fundamental entre a doutrina cristã da ressurreição e o
conceito grego da imortalidade da alma. Disse ele: “A alma não é imortal. Deve
haver uma ressurreição para ambos [corpo e alma]; pois desde a queda, o homem
inteiro é 'semeado corruptível’”.4־· Essa famosa conferência, que mais tarde foi
publicada em forma de livro sob o título Immortality of the Sou! or Resurrection of
the Dead! (Imortalidade da alma ou ressurreição dos mortos0, provocou violen
ta hostilidade da parte de alguns que acusaram Cullmann de ser um “monstro
que se deleita em causar angústia espiritual”.49 Um autor declarou: “O povo
francês, morrendo por falta do Pão da Vída, em vez disso teve oferecidas pedras,
se não serpentes”.50 Tais reações violentas exemplificam quão difícil é para as
pessoas reexaminarem crenças que há muito adotaram.
Em seu livro Basic Christian Teachings (Ensinos cristãos básicos), o teólogo
luterano Martin Heinechen rejeita como “falso dualismo” a noção de que por
ocasião da criação
D eus fez um a alma, que é a pessoa real, e en tão deu a essa alm a um a lar tem porário
num corpo, feito de pó da te rra ״ . O hom em deve ser considerado um a un idade.״
O dualism o cristão não tem que ver com alm a e corpo, m ente e te rn a e coisas
,que
passam , mas o dualism o de C riador e criatura. O hom em é uma pessoa, um ser
integral, um cen tro de responsabilidade, ap resen tando-se d ian te do C riador e Juiz.
Ele n ão tem vida ou im ortalidade den tro em si m esm o.’1
No The Pocket Commentar}׳ of the Bible [Comentário da Bíblia de Bolso],
Basii F. C. Atkínson, bibliotecário da Universidade Cambridge, escreve, com
relação a Gênesis 2:7;
Às vezes se têm pensado que a concessão do princípio de vida, como nos é apresen
tado neste verso, implica em imortalidade do espírito ou alma. Têm -se dito que ser
feito à imagem de Deus envolve imortalidade. A Bíblia nunca diz isso, Se envolvesse
imortalidade, por que não envolve igualmente onisciência e onipotência, ou qualquer
outra qualidade ou atributo do Infinito.7״ . Ao longo da Bíblia, o hom em é concebido
com o feito de pó e cinzas, uma criatura física, a quem o princípio de vida é concedido
por empréstimo. O s pensadores gregos tendiam a pensar no hom em como sendo uma
alma imortal aprisionada num corpo. A ênfase é oposta à da Bíblia, mas encontrou um
vasto lugar no pensam ento cristão.’2
Alguns eruditos católicos também reconhecem que o conceito tradicional
da imortalidade natural da alma não é um conceito bíblico. Claude Tresmoiv
tant, um erudito francês católico dominicano, contrasta a “ressurreição” bíblica
da pessoa integral com o ponto de vista dualístico tradicional, Ele escreve:
Im ortalidade o u R essurreição?
Mas o ensino judaico-cristão sobre a ressurreição é uma questão bem diferente. Não sig
nifica que uma parte do homem - sua alma - será liberada por ter a outra parte - seu cor
po material - descartada; o ensino bíblico deixa implícito que o homem total é salvo.55
Em The Biblical Meaning of Man (O sentido bíblico do homem), Dom
Wulstan Mork, que é também um erudito católico dominicano, desafia a po
sição dualística tradicional da natureza humana e insta o leitor a recuperar a
perspectiva holística bíblica. Escreve ele: “O homem bíblico, portanto o homem
como revelado na Bíblia, é uma unidade de carne, alma, e espírito, não uma
tricotomia, nem uma dicotomia de corpo e alma”. Ele prossegue observando que
a Bíblia vê o homem
como um todo, um ponto de vista salutar para descrever um viver integral e balance
ado, Tadicalmente relacionado com Deus, a humanidade e toda a criação. Precisamos
dessa perspectiva hoje, para contrafazer uma atitude platônica ainda na espreita, e
corrigir uma aceitação da situação humana por demais natural e secularizada.54
Mork acredita que uma recuperação da perspectiva holística bíblica da natu
reza humana contribuirá para uma “atitude mais salutar para com a pessoa huma
na, e, de fato, para com a questão em geral”.55
Reínhold Niebuhr, rçnomado teólogo americano e professor por longo tem
po no Seminário Teológico Union, contrasta o ponto de vista holístico bíblico da
natureza humana com o ponto de vista dualístico clássico. Ele conclui:
Todas as provas plausíveis e não-plausíveis para a imortalidade da alma são esforços
da parte da mente humana para compreender e controlar a consumação da vida. To
dos tentam provar de um modo ou de outro que um elemento eterno na natureza do
homem é digno e capaz de sobrevivência além da morte. Mas toda técnica mística
ou racional que busca criar o elemento eterno tende a negar o significado histórico
da unidade de corpo e ulmcí; e, com isso, o sentido de todo o processo histórico com
suas infinitas elaborações dessa unidade.56
Em seu livro The Christian Hope (A esperança cristã), o teólogo luterano T
A, Kantonen observa que
tem sido característica do pensamento ocidental desde Platão distinguir radicalmen
te entre a alma e o corpo. O corpo supostamente é composto de matéria, enquanto
a alma o é de espírito. O corpo é uma prisão da qual a alma é libertada por ocasião
da morte para levar avante sua primeira existência não-física. Daí o tema da vida
após a morte ter sido uma questão de demonstrar a imortalidade, a capacidade desa
fiadora da morte da alma. O corpo é de pouca consequência. Esse modo de pensar é
inteiramente estranho à Bíblia. Em perfeita harmonia com as Escrituras e rejeitando
decididamente a visão grega, o Credo dos Apóstolos não diz “creio na imortalidade
da alma”, mas “creio na ressurreição do corpo”,57
A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM NO NOVO T rstamfntO
Em seu impressionante estudo sobre o ponto de vista bíblico da natureza hu
mana, intitulado Bod} and Soul (Corpo e alma), R. G. Owen, ex-reitor do Trinity
Coliege, da Universidade de Toronto, oferece uma penetrante análise do contras
te entre o ponto de vista dualístico grego e a posição holístíca bíblica da natureza
humana. Owen descobre que o homem na Bíblia é um “todo psicossomático uni
ficado” e que “não pode haver parte destacável do homem que sobrevive à morte
física58;״ “A Bíblia״, ele escreve, “presume que a natureza humana é uma unidade;
no Novo Testamento ensina que o destino final do homem envolve a ‘ressurreição
do homem״A59 Owen propõe que “a velha doutrina da imortalidade da alma sepa
rada deve agora ser tranqüílamente posta no lugar dos espíritos que partiram60,״
Emíl Brunner, bem conhecido teólogo suíço, acha o ponto de vista du
alístico da natureza humana irreconciliável com a perspectiva holística bí
blica, Ele escreve:
Em alguma parte da fé cristã deve ter havido alguma abertura pela qual essa doutri
na estranha pôde penetrar. Certamente, segundo a perspectiva bíblica, somente Deus
é quem possui imortalidade. A opinião de que nós homens somos imortais em razão de
nossa alma ser de uma essência indestrutível - por ser divina - é, de uma vez por todas,
irreconciliável com a visão bíblica de Deus e do homemT
Brunner discute várias implicações negativas dessa concepção diialística da
natureza humana. Prímeiramente, ele assinala que o efeito do dualismo
não é meramente tom ar a morte inócua, mas também tirar do mal o seu aguilhão.
Assim como a morte afeta somente a parte inferior do homem, igualmente se dá isso
com o mal. O último consiste apenas no sensual e impulsivo. Eu próprio não sou
verdadeiramente responsável pelo mal, somente m inha parte inferior, que é como se
estivesse ligada a meu melhor, mais elevado e verdadeiro ser O mal, assim, não é ato
do espírito, nem rebeldia do eu contra o Criador, mas m eram ente uma natureza sen
sual ou impulsiva que não foi amansada pela mente. Em suma, o mal é a ausência de
mente, não o pecado,62
* Uma segunda conclusão a que se chega é que
o hom em em seu ser espiritual e mais elevado é divino, não tem caráter de ser criado.
Deus não é seu criador, Deus é o todo de que o espírito hum ano constitui apenas
uma parte. O hom em é um participante do divino no sentido mais direto e literal.
Daí, uma vez que essa forma de retirar do mal o seu aguilhão corre necessariam ente
paralelo com deixar a m orte inócua m ediante o ensino a respeito da imortalidade,
esta solução ao problema da m orte revela-se em irreconciliável oposição com o pen
sam ento cristão.63
Em seu livro I Believe in the Second Advent [Creio no segundo advento], Ste
phen H, Travis, um respeitado teólogo britânico, reconhece que se fosse pressio-
Im orta lid a d e ou R essu r r eiç ã o?
nado a escolher entre ״punição eterna” e “imortalidade condicional”, ele optaria
pela última. A primeira razão que elé dá é que a
imortalidade da alma é uma doutrina não-bíblica derivada da filosofia grega. No ensi
no bíblico o homem é ‘condicionalmente imortal’ - isto é, ele tem a possibilidade de
tornar-se imortal se receber a ressurreição ou imortalidade como um dom de Deus. Isso
deixaria implícito que Deus concede a ressurreição àqueles que o amam, mas os que a
Ele resistem perdem a existência.04
Travis faz notar que
o velho conceito da alma, que costumava ser a salvaguarda da passagem da pessoa
desta vida para a próxima, tem sido em grande medida abandonada no pensamen
to moderno. A natureza do homem é tida
,como uma unidade; ele não consiste de
duas partes, um corpo físico que morre e uma alma que prossegue vivendo para
sempre. Sua ‘1alma” ou “eu” ou “personalidade” é simplesmente uma função do
cérebro. Desse modo, quando o cérebro morre, a pessoa morre, e nada é deixado
para adentrar-se noutra vida.65
Bruce Reichenbach, filósofo americano, examina a natureza humana em seu
livro Is Man the Phoenix? (Seria o homem fênix?). Ele conclui que
a doutrina de que o homem como pessoa [alma] não morre apresenta dificuldades
particulares para o dualista cristão. Um fato é que isso aparentemente contraria os
ensinos das Escrituras... [Ele cita vários textos]. Cada uma destas e de numerosas
outras passagens indicam que cada um de nós, como pessoa, deve morrer. Não há
indício de que a única coisa sobre que se fala a respeito é a destruição do organismo
físico, e que a pessoa real, a alma, não morre mas prossegue vivendo.66
Donald Bloeseh, proeminente erudito evangélico, dá apoio à mesma con
clusão, dizendo; “Não existe imortalidade inerente da alma. À pessoa que morre,
inclusive aquele que morre em Cristo, defronta a morte tanto do corpo quanto da
alma”.67 Anthony Hoekema, teólogo calvinista, concorda: “Não podemos apontar
a nenhuma qualidade inerente no homem ou a qualquer aspecto do homem que
o torne indestrutível”.68 E F. Bruce, respeitado erudito britânico, especialista em
Novo Testamento, adverte que “nosso pensamento tradicional sobre uma 'alma
que nunca morre’, que tanto deve à herança greco-romana, torna-nos difícil apre
ciar o ponto de vista [holístico] de Paulo”.69
Murray Harris, erudito bíblico americano, conclui seu artigo sobre “Ressur
reição e Imortalidade” declarando: “O homem não é imortal porque possui ou é
uma alma. Ele se torna imortal porque Deus o transforma erguendo-o dentre os
mortos”.70 Ele explica que enquanto o pensamento platônico tomou a imortalida
de “um atributo inalienável da alma, ...a Bíblia não contém nenhuma definição da
constituição da alma que implique sua destrutibilidade”.71
A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM NO NOVO TESTAMENTO
Em sua dissertação doutoral “O Sheol no Antigo Testamento״, Ralph Waltér
Doermann concluí sua análise do ponto de vista veterotestamentário da natureza
humana ao dizer:
É evidente da perspectiva hebraica da unidade psicossomática do homem que havia
pouco espaço para a crença na “imortalidade da alma”. Ou a pessoa completa vivia ou a
pessoa inteira sucumbia à morte. Não havia existência independente para o ruach [espí
rito] ou para o nephesh [almal à parte do corpo. Com a morte do corpo o ruach [espírito]
impessoal ‘retoma para Deus que o deu' (Ec 12:7) e a nephesh [alma] é destruída, embora
esteja ainda presente, num sentido muito débil, nos ossos e no sangue.72
H. Dooyeweerd, filósofo holandês calvinista, critica agudamente a visão du-
alística da natureza humana. Ele rejeita tal perspectiva não só porque “a idéia de
uma substância centralizada na razão humana {ou seja, a alma) está em conflito
com a confissão de corrupção radical da natureza humana, mas também porque
a separabilidade da alma do corpo suscita vários problemas״. Um dos problemas
que ele menciona é o de que é impossível à “alma”, separada do corpo levar avante
quaisquer atividades, porque as funções psíquicas estão indissoluvelmente ligadas
ao relacionamento temporal total e às funções do corpo.73
Conclusão
Chegamos ao final de nossa pesquisa de quatro palavras proeminentes emprega·׳
das no Antigo Testamento para descrever a natureza humana, a saber alma, espírito,
corpo e coração, Descobrimos que o Novo Testamento expande o sentido veterotesta
mentário desses termos à luz dos ensinos e do ministério redentor de Cristo,
No Novo Testamento, a “alma-psyché” não é uma entidade imaterial e imor
tal que sobrevive à morte do corpo, mas a pessoa total como um corpo vivo, com
sua personalidade, apetites, emoções e habilidades de raciocínio. A alma-ps:yc/ié
denota a vida física, emocional e espiritual. Cristo ampliou o sentido de alma-
psychê para incluir o dom da vida eterna recebida por aqueles que estão dispostos
a sacrificar sua vida terrena por Ele, mas nunca sugeriu que a alma seja uma en
tidade imaterial, imortal. Pelo contjgrio, Jesus ensinava que Deus pode destruir a
alma, tanto quanto o corpo (Mt 10:28) dos pecadores impenitentes,
Paulo nunca emprega o termo “alma-psycfiê” para denotar a vida que sobre
vive à morte. Em vez disso, ele identifica a alma com nossa natureza física (ps^chí-
Icon), que se sujeita à lei do pecado e da morte (ICo 15:44). Para assegurar que
seus conversos gentios entendiam que nada há de imortal na natureza humana
por si mesma, Paulo empregou o termo “espírko-pnettnuT para descrever a nova
vida em Cristo, a qual o crente recebe integralmente como um dom do Espírito de
Deus tanto agora quanto na ressurreição.
Im ortalidade o u R essurreição?
O “espírito ״pneuma'\ como a alma, não é um componente independente,
espiritual da natureza humana que atua à parte do corpo, mas o princípio de vida
que anima o corpo físico e regenera a pessoa inteira. Descobrimos que o sentido e
função do Espírito são expandidos com a vinda de Cristo, que é identificado com
o Espírito na obra da salvação. O significado do espírito-pneuma como princípio
de vida é ampliado para incluir o principio de nova vida de regeneração moral
tomado possível mediante a redenção de Cristo.
O Espírito sustém tanto os aspectos físicos quanto morais da vida. A transfor
mação moral realizada pelo Espírito Santo é descrita mais plenamente no Novo Tes
tamento do que no Antigo Testamento. João e Paulo descrevem este processo com
duas metáforas diferentes, contudo complementares: renascimento e nova criação.
O Espírito-pneutna é a palavra mais importante do vocabulário de Paulo so
bre este tópico, porque serve para demonstrar que a salvação é exclusivamente
um dom divino de graça mediado pelo “Espírito de vida em Cristo Jesus” (Rm
8:2), e não uma posse natural de uma alma imortal. Em parte alguma o Novo Tes
tamento identifica o Espírito transmissor de vida com uma alma imaterial, imortal
capaz de desligar-se do corpo,
A função do Espírito não é suster uma alma espiritual, imortal, mas apoiar
tanto nossa vida física quanto espiritual. Tanto a criação quanto a recriação, o
nascimento e o renascimento, são atos do Espírito porque Jesus explicou: “o Es
pírito é o que vivifica” (Jo 6:63). O espírito, à semelhança da alma, descreve, não
uma entidade separada da natureza humana, mas a pessoa integral como sustida e
transformada pelo Espírito de Deus,
O corpo no Novo Testamento denota a pessoa inteira, tanto literalmente, na
realidade concreta da existência humana, quanto figurativamente, na submissão
da pessoa à influência do pecado ou ao poder do Espírito Santo. O sentido do
corpo humano no Novo Testamento é reforçado pela encarnação de Cristo num
corpo humano e por sua ressurreição num corpo glorificado (fo 20:27).
O corpo tem significação etema no propósito criativo e redentor de Deus. A
redenção não significa a remoção da alma do corpo, mas a renovação do corpo como
a pessoa integral nesta vida presente, e a ressurreição do corpo como a pessoa integral
no mundo por vir. “O corpo não é o túmulo para a alma, mas um templo do Espírito
Santo, À parte do corpo, o homem não é completo”.74 Assim, mesmo na nova terra,
o corpo será parte essencial da existência humana j^rque os remidos existirão, não
como almas desincorporadas, mas como pessoas ressuscitadas em corpo.
O coração no Novo Testamento representa a vida interior integral de uma
pessoa. Denota, a exemplo do Espírito, as funções emocionais, intelectuais e espi
rituais de alguém. O fato de que tais funções são igualmente atribuíveis ao coração
e ao espírito revela que o Novo Testamento, à semelhança do Antigo, considera
a natureza humana como uma unidade indissolúvel, não como uma composição
de diferentes “peças”.
A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM NO NOVO TESTAMENTO
,Resumindo nossa pesquisa da perspectiva da natureza humana tanto no Anti
go quanto no Novo Testamento, podemos dizer que a Bíblia é coerente ao ensinar
que a natureza humana é uma unidade indissolúvel, onde o corpo, alma e espírito
representam diferentes aspectos da mesma pessoa, e não diferentes substâncias ou
entidades atuando independentemente. Esta perspectiva holística humana remove
a base para a crença na sobrevivência da alma por ocasião da morte do corpo.
O ponto de vista holístico da natureza humana que encontramos na Bíblia
levanta muitas indagações importantes: o que acontece quando uma pessoa mor׳
re? Acaso a pessoa completa, corpo, alma, e espírito, perece por ocasião da morte
de modo que nada sobrevive? Se assím é, por que a Bíblia fala da ressurreição dos
mortos? Qual é o estado dos mortos entre a morte e a ressurreição, um período
geralmente conhecido como estado intermediário? Qual é a natureza do corpo
ressurreto? Será semelhante ou diferente do corpo presente? Estas são algumas das
perguntas que devemos responder nos capítulos que se seguem.
R e f e r ê n c ia s ־
1 Uma pesquisa bastante abrangente da literatura intertestamentária que trata da natureza e des׳
tino humanos acha׳ se em H. C. C. Ca vai in, I.ife after Death: Pauls Argument for the Resurrec-
don of the Dead in Í Corinthians; Pan J: An inquiry into the Jewish Background {Lund: Holland
1974). O utro estudo erudito é o de George Nickelsburg jr. em Resurrection, Immortality, anã
Eternal Life in Inter^tesiamentary Judaism (Cambridge, 1972).
1 Baruch 30, citado de R. H. Charles, The Apocryphaand Pseudepigrapha of the Old Testament in En-
glish with Introductory and Critical Explanatory Notes to the Several Books (Oxford, 1913), 498.
I Comentando este texto, R. H. Charles escreveu: “Esta imortalidade condicional do homem
aparece também em 1 Enoque 69:1 1; Sabedoria 1:13, 14; 2 Enoque 30:16, 17; 4 Esdras 3:7”
(Ibid., 477).
4 Ibid., 49. De acordo com R. H, Charles, “Este é o exempla atestado mais antigo desta expecta׳
tiva nos últimos dois séculos a.C.” (Ibid., 10).
5 Ibid, 538.
6 Ver 4 Macabeus 10:15; 13:17; 18:18; 18:23.
7 Ver 4 Macabeus 9:8,32; 10:11,15, 12:19; 13:15.
SR Wheeler Robinson, The Christian Doctrine o/M an (Edimburgo, 1952), 74.
9 Basil F. C. Atkinson, Life and Immortality (Taunton, Inglaterra, S. D.), 12.
10John A. T Robinson, The Body: A Study of Pauline Theology (Londres, 1966), 23.
II Edward Schweizer, "Psyche”, Theological Dictionary of the New Testament, ed., Gerhard Friedri
ch, (Grand Rapids, 1974), vol. 9, 640.
12 O dado numérico é fornecido por Basil E C. Atkinson (referência 9), 14·
13 Edward Schweizer (referência 11), 644- (Ver também pág. 653).
14 Robert A. Morey, Death and the Afterlife (Mineápolis, 1984), 152,
15 Oscar Cullmann, “Immortality of the Soul or Resurrection of the Dead?” in Immortality and
Resurrection. Death in the Western World: Two Conflicting Currents of Thought, ed. Krister Sten-
dahl (Nova York, 1968), 36-37.
Imortalidade ou R essurreição?
16 Edward William Fudge, The Fire That Consumes (Houston, 1989), 173.
17Ibid., 177·
18 Edward Schweizer (referência 11), 646.
19 O dado numérico é fornecido para Edward Sehweizer (referência 11), 648, n. 188.
20 Este ponro de vista é expresso por Edward Schweizer (referência 11), 650. Semelhantemente,
Tony Hoff observa que ״Paulo nunca emprega psyche para a vida que sobrevive à morte [por
que] ele estava ciente da possibilidade dessa exata distorção durante esse tempo. Ele sabia que
a presença de uma tradição platônica iria confundir particularmente os conversos gentílicos”
(“NephesJi and the Fulfillment It Receives as Psyche” in Toward a Biblical View of Marv Some
Readings, ed. Arnold H. De Graff e James H. Olthuis [Toronto, 1978], 114).
21 John Calvin, Institutes of the Christian Religion, trad. F. L. Battles (Filadélfia, 1960), vol. 1,
192.
22 Ibidem.
23 H. W heeler Robinson (referência 8), 122.
24 Catechism of the Catholic Church (Roma, 1994) > 93-94.
Ibid., 93.
:<1 Edward Schweizer (referência 11), 651.
27 W. W hite, “Spirit", The Zondervan Pictorial Encyclopedia of the Bible, ed, Merrill C. Tenney
(Grand Rapids, 1978), vol. 5, 505.
28 David W. Stacey, The Pauline, View of Man (Londres, 1956), 135
.Claude Tresmontant, A Study of Hebrew Thought (Nova York, 1960), 107 ״2
20 Henry Barclay Swete, The Hob Spirit in the New 1 estennent (Londres, 1910), 342.
31 Wheeler Robinson (referência 8), 109.
32 Ver por exemplo, Robert A. Morey (referência 14), 62; W. Morgan, The Religion and Theology of
Paw! (Nova York, 1917), 17s$. Uma apresentação clássica da interpretação dualística de carne
e Espírito se encontra em O. Pfleiderer, Primitive Christianity (Nova York, 1906), v o l 1 ,280ss.
Ver também a dissertação de Mary E. W hite, “The Greek and Roman Contribution”, in The
Heritage of Western Culture, ed. R. C. Chalmers (Toronto, 1952), 19-21. Ela argumenta que o
contraste entre carne e espírito deriva do dualismo grego e “tem resultado em muitos séculos
de mortificação da carne antes que o equilíbrio seja restaurado” (21),
;i D. E. H. Whiteley, The Theology of St, Paul (Grand Rapids, 1964), 39.
34 Charles Davis, “The Resurrection of the Body”, Theology Digest (1960), 100.
35 George Eldon Ladd, A Theology of the New Testament (Grand Rapids, 1974), 472.
36 Oscar Cullmann (referenda 15), 25-26.
37 Pata uma iluminadora discussão sobre o entendimento do dualismo de Paulo, ver Ronald L. Hall,
“Dualism and Christianity. A Reconsideration", Center journal (outubro de 1982), 43-55.
36 H. W heeler Robinson (referência 8), 117.
39 D. R. G. Owen, Body and Soul (Filadélfia, 1956), 17 h
40 Ronald Hall (referência 37), 50.
41 D. R. G. Owen (referência 39), 174-
42 Ibid., 174-175,
45 Rudolf Bultmann, Theology o f the New Testament (Nova York, 1951), 194.
Karl Barth, Church Dogmatics (Edimburgo, 1960), v־14 o l 3, parte 2, 436.
43 Para uma pesquisa abrangente de líderes eclesiásticos e eruditos que ao longo da história cristã
têm mantido a visão holística da natureza humana e assim a imortalidade condicional, ver os
monumentais dois volumes de LeRoy Edwin Froom, The Conditiomlist Faith of Our Fathers;
The Conflict of the Ages Over the Nature and Destiny of Man (Washington, D. C., 1965).
46 William Temple, Christian Faith and Life (Londres, 1954), 81.
A visão da natureza do homem no N ovo T estamento
47 William Temple, Man, Nature and Cod (Londres, 1953), 472.
48 Oscar Cullmann (referência 36), 28׳
49 Ibid., 47.
50 Ibidem.
51 Martin J. Heinecken, Basic Christian Teachings (Filadélfia, 1949), 37, 133.
Basil F. C. Atkinson, The Pocket Commentary of the Bible (Londres, 1954), Part 1, 32.
s ■ Claude Tremontant, St. Paul and die Mastery of Christ (Nova York, 1957), 132-133. Os itálicos
foram acrescentados. Numa linha de pensamento semelhante, Y. B. Tremei, erudito dominicano
francês, faz uma notável admissão: “O Novo Testamento obviamente não concebe a vida hu
mana após a morte filosoficamente ou em termos da imortalidade natural da alma. Os autores
sagrados não pensam na vida por vir como o termo de um processo natural. Pelo contrário, para
eles é sempre o resultado de salvação e redenção; depende da vontade de Deus e da vitória em
Cristo+' (',Man Between Death and Resurrection," Theology Digest [outono de 1957], 151).
74 Dom Wulstan Mork, The Biblical Meaning of Man (Milwaukee, W l, 1967), x.
” Ibid., 49.
46 Reinhold Niebuhr, The Nature arui Destiny’ of Man (Nova York, 1964), 295. Itálicos acrescen
tados.
57 T A. Kantonen, The Chnstiart Hope (Filadélfia, 1 9 5 4 )2 8 .־
w Derwyn R. G. Owen, Body and Sou/: A Study of the Christian View of Man (Filadélfia, 1956), 27·
w Ibid., 29.
60 Ibid., 98.
61 Emil Brunner, Eternal Hope (Filadélfia, 1954), 106. Itálicos acrescentados.
t2 Ibid., 101.
Ibidem.
64 Stephen H. Travis, I Believe in the Second Coming of Jesus (Grand Rapids, 1982), 198.
Ibid,, 163.
6fl Bruce R. Reichenbach, is Man the Phoenix? A Study of immortality (Grand Rapids, 1978), 54.
,espirituais da alma quanto as
necessidades físicas do corpo.
O holismo bíblico pressupõe uma visão cósmica da redenção que abrange o
corpo e a alma, o mundo material e espiritual, este mundo e o mundo por vir. Não
contempla um paraíso etéreo habitado por almas glorificadas, mas este planeta
restaurado à sua perfeição original e habitado por pessoas reais que se empenha
rão em vida e atividades reais. E minha fervorosa esperança que este livro, fruto de
muitos meses de dedicada pesquisa, aumente a apreciação de muitos cristãos pelo
glorioso plano de Deus para nossa vida presente e destino futuro.
R e f e r ê n c ia .v.-: ...·:··'·:··
1Ver Tabela 2.1 “Religious Belief, Europe and the USA", in Tony Walter, The Eclipse o f Etemity
(Londres, 1996), 32.
CAPITULO 1
O DEBATE SOBRE A NATUREZA E O
DESTINO HUMANOS
O que os cristãos creem a respeito da constituição de sua natureza humana
determina em grande medida o que creem a respeito de seu destino final. O s que
crêem que sua natureza é dualística, ou seja, que consiste de um corpo material
e mortal e uma alma espiritual· imortal» geralmente visualizam um destino no
qual suas almas imortais sobreviverão à morte de seus corpos e passarão à eter-
nidade, seja na glória paradisíaca ou no torm ento infernal. Para alguns» com o
os católicos e outros, existe ainda a possibilidade de que almas que podem obter
perdão sejam purificadas no purgatório antes de subirem ao paraíso.
Por outro lado, os que acreditam que sua natureza é holística [ou integral],
consistindo de um todo indivisível onde corpo, alma e espírito são som ente
características da mesma pessoa, geralmente imaginam um destino no qual sua
pessoa mortal integral será ressuscitada, seja para a vida eterna ou morte eterna.
Os dois diferentes destinos imaginados por uma perspectiva dualística ou holís
tica da natureza humana poderiam ser caracterizados, com o sugerido pelo título
do livro, com o imortalidade da alma ou ressurreição dos monos.
O ponto de vista bíblico da natureza e destino humanos tem atraído consi
derável atenção escolástica em anos recentes. Eruditos dè vanguarda de diferentes
persuasões religiosas têm abordado esta questão em artigos e livros. Uma pesquisa
de estudos produzidos durante os últimos cinqüenta anos mais ou menos revela que
o ponto de vista tradicional da natureza humana passou a sofrer intenso ataque.
Eruditos parecem superar-se uns aos outros no desafio ao dualismo tradicional
e na afirmação do holism o bíblico. A o examinar-se a literatura erudita nesse׳
campo fica-se quase com a impressão de que o cristianismo está saindo de um
estupor, subitamente passando a descobrir cjue por tempo demasiado conservou
um entendimento da natureza humana derivado do dualismo platônico, antes
que do holísmo bíblico*
O b je t iv o s d este l iv r o ־
Este livro foi construído sobre pesquisas realizadas por numerosos eruditos
em anos recentès e se empenha em demonstrar como o ponto de vista holístico
da natureza humana determina gr.andemente nosso entendimento de nós pró׳
prios, deste mundo atual, da redenção e de nosso destino final.
O objetivo deste estudo é duplo. O primeiro é estabelecer a perspectiva
bíblica da natureza humana. Aprenderemos que a Bíblia vê a natureza humana
comò uma unidade·indivisível. Essa verdade tem sido acatada em anos recentes
por muitos eruditos de todas as confissões. Na Bíblia não há divisão da pessoa
em corpo e alma, ou corpo, alma e espírito. Todos esses são componentes ou ca
racterísticas do mesmo indivíduo. A dicotomiade corpo e alma deriva do plato
nismo e não da revelação bíblica. O ponto de vista bíblico da natureza humana
é holístico e monísrico, não dualístico. À perspectiva platônica do corpo como
prisão da alma é estranha à Bíblia e tem causado grande dano à espiritualidade,
soteriologia e escatologia cristãs.
O segundo objetivo deste livro é examinar como o ponto de vista bíblico
da natureza humana tem que ver com nossa vida atual e o seu destino final.
Há uma tendência em estudos eruditos de examinar isoladamente, seja o pon
to de vista bíblico da natureza humana (antropologia bíblica) ou o do destino
humano (escatologia bíblica). Raramente se fazem tentativas para estudar a
correlação entre ambas. Contudo, aá duas não podem ser estudadas isolada
mente porque o ponto de vista bíblico da natureza humana determina a visão
que se tem dò destino humano.
Temos uma tendência e habilidade para dividir, analisar, e isolar, mas com
freqüência falhamos em sintetizar e mostrar como as várias partes contribuem
para um quadro mais amplo. Neste estudo tento demonstrar como a posição
holística bíblica da natureza humana pressupõè a visão bíblica realística do des
tino humano na qual corpo e alma, carne e espírito, os componentes materiais
e espirituais de nossa natureza e de nosso mundo são todos parte da criação,
redenção e restauração final por Deus.
·PROCEDIMENTO'.
O procedimento neste livro é o seguinte; primeiro estudamos a perspectiva
bíblica da natureza humana examinando.algumas das palavras-chave usadas para
íMQRTALIDADE OU RESSURREIÇÃO?
O DEBATE SOBRE A NATUREZA E O DESTINO HUMANOS
“homem״ tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. Conquanto à primeira
vista isso pareça uma análise/devemos conservar em mente ao longo de nosso
estudo que sob cada termo estamos considerando a pessoa integral: o indivíduo
como alma, o indivíduo como corpo e o indivíduo como espírito. Assim, con
quanto consideremos os vários aspectos da natureza humana, estamos sempre
vendo a pessoa como um todo. Devemos também ter em mente que na Bíblia,
como acentua J. A. T. Robinson, “qualquer parte pode apresentar-se em qualquer
momento pelo todo1.״
O segundo passo do procedimento é examinar o ponto de vista bíblico do
destino humano à luz de seu ensino sobre a natureza humana. O estudo reveía
que o ponto de vista holístico-bíblico da natureza humana, em que corpo e alma
são uma unidade indissolúvel, pressupõe também uma perspectiva bíblica do des
tino humano, segundo a qual a pessoa integral, corpo e alma, é ressuscitada para
receber vida eterna ou morte eterna. Além disso, os que recebem a vida eterna
passarão a eternidade não em um paraíso etéreo, espiritual, mas neste planeta
Terra material, restaurado por Deus à sua perfeição original
O estudo do destino humano requer uma análise das errôneas concepções
populares concernentes ao estado intermediário entre a morte e a ressurreição, o
paraíso e o inferno. Cada um desses tópicos é examinado num capítulo separado à
luz do ensino bíblico. Atenção especial é dada ao estudo do inferno no capítulo 6,
em vista da difundida rejeição do ponto de vista tradicional do inferno como tor
mento consciente. A meta final deste estudo não é meramente expor as falácias
dos entendimentos prevalecentes, mas basicamente afirmar a perspectiva bíblica
holística e realística da natureza e destino humanos.
Este capítulo introdutório é designado a propiciar uma visão geral dos dois
pontos de vista básicos da natureza humana e seu impacto sobre a fé e prática
cristãs. Seu propósito é ajudar o leitor a entender a importância das questões abor
dadas nesta obra. Perceberemos que o que os cristãos crêem a respeito da consti
tuição de sua natureza humana em grande escala determina sua compreensão de
si próprios, deste mundo presente, da redenção e do destino final
Dois pontos de vista básicos da natureza e desuno humanos
Há duas visões cristãs básicas do destino humano que se originam de dois
pontos de vista fundamentalmente diversos da natureza humana. A primeira tem
por base a crença na imortalidade da alma, e a segunda a crença na ressurreição
do corpo. Em seu erudito estudo The Nature and Destiny of Man (A natureza e
destino do homem), Reinhold Niebuhr sugere que as crenças cristas fundamental-
Im o rtalid ad e o u R essu r reiçã o ?
mente diferentes a respeito da natureza e destino humanos derivam de dois pon
tos de vista
,h7 Donald G. Bloesch, Essentials of Evangelical Theology׳ (São Francisco, 1979), vol 2, 188.
65 A nthony Hoekema, The Bible and the Future (Grand Raprds, 1979), 90.
69 F. F. Bruce, “Paul on Immortality”, Scottish Journal of Theology 24, 4 (novembro de 1971), 469.
70 Murray Harris, “Resurrection and Immortality: Eight Theses", Themelios 1, no. 2 (primavera
de 1976), 53
71 Ibidem.
72 Ralph Walter Doermann, “Sheol in the Old Testament", (Dissertação doutoral, Duke Univetv.
sin,205 ,(1961 ,׳.
A H. Dooyeweerd, “Kuypers Wetenschapsleer,” Philosophic! Reformata, IV, 199-201, como citado
por G. C. Berkouwer, Man: The Image of God (Grand Rapids, 1972), 255-256.
74, A nthony A. Hoekema, The Bible and the Future (Grand Rapids, 1979), 91.
CAPÍTULO 4
A VISÃO BÍBLICA DA MORTE
Ao longo da história humana, as pessoas têm-se recusado a aceitar a finalização
que a morte traz para a vida. A morte acarreta uma inaceitável e súbita interrupção
de trabalho, planos e relacionamentos de uma pessoa. Embora figure na inscrição
de muitas pedras tumulares de cemitérios a frase ,'descansa em paz”, a verdade é que
a maioria das pessoas não dá boa acolhida ao pacífico repouso da sepultura. Preferi
riam estar vivas e produzindo. Assim, não é de surpreender que o tema da morte e
do além-túmulo sempre tenha sido uma questão de intensa preocupação e especu
lação. Afinal de contas, o índice de mortalidade é ainda de um por pessoa: cada um
de nós, no tempo determinado, enfrentará a sombria realidade da morte.
Hoje vivemos numa cultura que nega a morte. As pessoas vivem como se
a morte não existisse. Médicos e pessoas que trabalham em hospitais geralmente
pensam que a morte é algo que não devia acontecer. A despeito de quão mise
ráveis as pessoas se sintam, geralmente respondem ao cumprimento ״como vai?”
com um sorriso artificial e dizem: “Estou bem!”. Quando não mais conseguimos
manter a fachada, começamos a nos indagar: “O que ocorrerá comigo agora?”
Mesmo no final da vida, tendemos a negar a realidade da morte embalsaman
do os mortos e empregando cosméticos para restaurar o cadáver e dar-íhe uma apa
rência natural e saudável Vestimos os mortos em temos e belas vestes como se
estivessem indo para uma festa, em lugar de ser um retomo ao pó da terra.
Em anos recentes, cursos sobre a morte e o morrer têm sido introduzidos em
muitas faculdades e escolas de nível médio. Algumas faculdades e universidades
também oferecem cursos sobre o oculeo e outros fenômenos, tais como experiências
de quase-morte que, segundo se alega, oferecem evidência científica da vida após a
Imortalidade ou Ressurreição?
morte, Todas essas tendências sugerem que há hoje renovado interesse em desfazer
os mistérios da morte e reassegurar-se de alguma forma de vida após a morte.
O bjetivos deste capítulo
Este capítulo persegue dois objetivos principais. Primeiro, passaremos breve
mente em revista um histórico da crença na sobrevivência da alma, dando espe
cial enfoque aos recentes acontecimentos que têm revivido a noção de existência
consciente após a morte. Veremos que o espiritualismo, o estudo de experiências
de quase-morte, e a canalização (promovidos pelo movimento Nova Era, espe
cialmente mediante a influência da atriz Shirley MacLaine) têm contribuído pára
promover o ponto de vista de que a morte não é a cessação da vida, mas uma
transição para uma forma diferente de existência*
Em segundo lugar, examinaremos o entendimento bíblico da natureza da
morte. Acaso a Bíblia ensina que a morte é a separação da alma imortal do corpo
mortal? Ou, na verdade, a Bíblia ensina que a morte é o término da vida para a
pessoa completa, corpo e alma? Noutras palavras, de acordo com a Bíblia, a morte
é a cessação da vida para a pessoa inteira, ou a transição a uma nova forma de vida
para o componente imortal de nosso ser?
Para encontrar respostas a essas indagações, tomaremos as Escrituras a fim
de examinar todas as passagens pertinentes. Temos seguido esse procedimento
nos capítulos anteriores quando estudamos o ponto de vista bíblico da natureza
humana. Deve-se sempre permitir às Escrituras interpretarem as Escrituras. Pas-'
Isagens que apresentam certos problemas devem ser interpretadas à luz daquelas{
ique são claras. Seguindo tal princípio, conhecido como analogia de fé. podemos i
resolver as aparentes contradições que encontramos na Bíblia. J
Esb o ç o h istó r ic o d a c r e n ç a n a so br ev iv ên c ia d a a im a
“É CERTO QUE NÃO MORREREIS”
Como preparação do cenário para a visão bíblica da morte e da condição
dos mortos no capítulo que se segue, pode ser de auxílio considerar brevemente a
história da crença da sobrevivência da alma após a morte. A mentira da serpente
“é certo que não morrereis” (Gn 3:4) tem sobrevivido ao longo da história huma
na até a nossa época. A crença em alguma forma de vida após a morte tem sido
mantida praticamente por todas as culturas. A necessidade de segurança e certeza
em foce do desafio que a morte representa tem levado pessoas em toda cultura a
formular crenças em alguma forma de vida após a morte.
A VISÃO BÍBLICA DA MORTE
Na história do cristianismo, a morte tem sido definida geralmente como a se
paração da alma imortal do corpo mortal. Esta crença na sobrevivência da alma por
ocasião da morte tem sido expressa de várias maneiras e dado origem a doutrinas
tais como a oração pelos mortos» indulgências, purgatório, intercessão dos santos, o
tormento eterno do inferno, etc. Desde o tempo de Agostinho (354-430 d.C.), os
cristãos têm sido ensinados que entre a morte e a ressurreição há um período conhe
cido como “estado intermediário” - as almas estão ou a desfrutar as bem-aventuran
ças do paraíso, ou sofrendo a aflição do purgatório ou do inferno. Pressupõe-se que
a condição desíncorporada da alma continua até a ressurreição do corpo, que trará
a complementação da salvação dos santos e a perdição dos ímpios.
Durante a Idade Média, o temor da morte e as especulações a respeito do
que acontece com a alma após a morte dominavam a imaginação das pessoas e
inspiraram obras literárias e teológicas. A Divina Comédia de Dante é apenas um
pequeno fragmento da imensa literatura e obras artísticas que descrevem vivida
mente os tormentos das almas dos pecadores no purgatório ou inferno, e a felici
dade das almas dos santos no paraíso.
A crença da sobrevivência dá alma tem contribuído para o desenvolvimento
da doutrina do purgatório, um lugar onde as almas dos mortos são purificadas pelo
sofrimento da punição temporal de seus pecados antes de ascenderem ao paraíso.
Essa doutrina vastamente admitida sobrecarregou os vivos com tensão emocional
e financeira. Como Ray Anderson comenta, “não só se tinha que ganhar o sufi
ciente para viver, mas ainda pagar a ‘hipoteca espiritual* pelos mortos”.1
̂A REJEIÇÃO DO PURGATÓRIO PELOS REFORMADORES ^ P ü EU A T C £· }
A Reforma Protestante começou em grande medida como uma reação con
tra as crenças supersticiosas medievais a respeito da pós-vida no purgatório. Os
reformadores rejeitaram como antíbíblica e despropositada a prática de comprar e
vender indulgências para reduzir a permanência no purgatório das almas dos pa
rentes que partiram. Não obstante, continuaram a crer na existência consciente
das almas, fosse no paraíso ou no inferno, durante o estado intermediário. Calvino
expressou essa crença de modo mais contundente do que Lutero.2 Em seu tratado
Psychopannychia^} que redigiu contra os anabatistas que ensinavam que as almas
simplesmente dormem entre a morte e a ressurreição, Calvino argumentava que
durante o estado intermediário as almas dos crentes desfrutam as bem-aventu
ranças celestiais, enquanto as dos descrentes sofrem as torturas do inferno. Por
ocasião da ressurreição, o corpo é reunido à alma, assim intensificando o prazer
paradísico ou as angústias infernais. Desde esse tempo, esta doutrina do estado
intermediário tem sido aceita pela maioria das igrejas protestantes e se
,reflete em
várias confissões de fé.4
Im ortalidade o u R essurreição?
A Confissão de Westminster (1646), considerada a declaração definitiva das
crenças presbiterianas no mundo de língua inglesa, afirma:
O corpo dos homens após a morte retoma ao pó e experimenta a corrupção; mas suas
almas (que nem morrem nem dormem), tendo uma subsistência imortal, imediata-
mente retomam a Deus que as deu. As almas dos justos, sendo então tomadas perfei
tas em santidade, são recebidas nos mais altos Céus, onde contemplam a face de Deus
em lu2 e glória, aguardando a plena redenção de seus corpos; e as almas dos ímpios são
lançadas no inferno, onde jazem em tormento e trevas completas, reservadas para o
juízo do grande dia.5
A confissão prossegue declarando ser antibíblica a crença no purgatório.
Ao rejeitar como antíbíblicas as superstições populares concernentes ao so
frimento das almas no purgatório, os reformadores prepararam o caminho para
um reexame da natureza humana pelos filósofos racionalistas do Ilumínismo. Es
ses filósofos não abandonaram de imediato a noção da imortalidade da alma. O
primeiro ataque significativo à crença na sobrevivência da vida após a morte veio
de David Hume (1711-1776 d.C.), um filósofo e historiador inglês. Ele questionou
a imortalidade da alma porque cria que todo conhecimento procede das percep-
ções sensoriais do corpo.6 Uma vez que a morte do corpo assinala o fim de toda
percepção sensoríal, é impossível que a alma tenha existência consciente após a
morte do corpo.
O declínio da crença na pós-vida atingiu seu clímax em meados do século 18,
à medida que o ateísmo, ceticismo e racíonalismo se espalhavam pela França, In
glaterra e América. A publicação de Origem das Espécies de Darwín (1859) infligiu
outro golpe ao sobrenaturalísmo, especialmente na idéia de imortalidade da alma,
Se a vida humana é produto de geração espontânea, então os seres humanos não
têm um espírito divino ou alma imortal neles. As teorias de Darwín desafiaram as
pessoas a procurarem evidência “científica״ para os fenômenos sobrenaturais tais
como a sobrevivência da alma.
O ESPIRITISMO E O REAVIVAMENTO DO INTERESSE NA ALMA
O interesse do público pela vida da alma após a morte passou por um reaviva-
mento com a publicação de The Corning Roce [A raca futurai (1860), por Bulmer Lvt-
ton. Esse livro influenciou bom número de escritores que contribuíram em tomar prá
ticas ocultistas algo da moda na sociedade britânica. Na América, o interesse público
na comunicação com as almas dos mortos foi despertado pelas sessões mantidas pelas
irmãs Fox? que viviam em Hydesdale, Nova York. Em 31 de março de 1848, conduzi
ram uma sessão em que o suposto espírito de um homem assassinado, que a si mesmo
se chamava de William Duesler, as informava de que se cavassem no porão, encontra
riam o seu cadáver. Isso se demonstrou verdadeiro. Um corpo foi encontrado.
A VISÃO BÍBLICA DA MORTE
Uma vez que os espíritos dos mortos na casa das irmãs Fox se comunicavam
por meio de batidas sobre a mesa, sessões de ״batidas sobre a mesa״ tornaram-se
populares por toda a América e Inglaterra como uma maneira de comunicar-se com
os espíritos dos falecidos. Esse fenômeno atraiu a atenção de numerosas pessoas
de cultura que, em 1882, organizaram a Sociedade para Pesquisa Psíquica. Henry
Sedgwich, notável filósofo de Cambridge, tomou-se a instrumentalidade para atrair
para a sociedade as pessoas mais influentes da época, inclusive William Gladstone
(ex-primeiro ministro britânico) e Arthur Balfour (futuro primeiro-ministro).
Um importante resultado do movimento da SPP é representado pela obra de
Joseph Banks Rhine, que, em ,1930, começou a pesquisar a vida consciente após a
morte. Rhine tinha formação de biólogo pela Universidade de Chicago e, mais tarde,
envolveu-se com a SPP enquanto lecionava na Universidade Harvard. Ele redefiniu
e renomeou os temas que a SPP havia pesquisado por anos, cunhando termos tais
como “percepção extra-sensorial״ (PES), “psicologia paranormal״ ou “parapsicolo
gia״. Isso tinha o objetivo de dar credibilidade científica ao estudo do além-túmulo.
Posteriormente, Rhine, juntamente com William McDougal que serviu como pre
sidente tanto para os grupos britânicos como americano da SPP - estabeleceu um
Departamento para Estudos psíquicos na Universidade Duke. Os russos conduziram
suas próprias experiências psíquicas. Suas descobertas foram publicadas em forma
popularizada em Psychic Discoveries Behind the Iron Curtain [Descobertas psíquicas
atrás da cortina de ferro], por Sheila Ostrander e Lynn Schroeder (1970).
Pelo final dos anos 1960, o falecido bispo episcopal James A. Pike concedeu
nova e ampla atenção à idéia de comunicação com os espíritos dos mortos, comu-
nicando-se numa base regular com o filho falecido. Hoje nossa sociedade encon
tra-se invadida por médiuns e paranormais que fazem publicidade de seus serviços
por todo o país mediante a TV, revistas, rádios e jornais. Em seu livro At The Hour
of Death (Na hora da morte], K. Osis e and E. Haraldson escrevem:
Experiências espontâneas de contato com os mortos são surpreendentemente bas
tante difundidas. Numa pesquisa nacional de opinião... 27% da população america
na declarou ter tido encontros com parentes mortos,., viúvas e viúvos... relataram
encontros com seus cônjuges falecidos com o dobro da frequência - 51%!7
A comunicação com os espíritos dos mortos não é um fenômeno apenas
americano. Pesquisas conduzidas em outros países revelam um percentual igual-
mente elevado de pessoas que contratam os serviços de médiuns para se comuni
carem com o espírito de seus amados falecidos.8
Em sua obra Immortality ôr Extinction? [Imortalidade ou extinção/], Paul e
Linda Badham, ambos professores da Universidade St. David, no País de Gales,
dedicaram um capítulo à “Evidência de Pesquisa Psíquica” para apoiar sua crença
na vida consciente após a morte. Eles escreveram:
Im o r ta lid a d e o u R essu rreiçã o?
Algumas pessoas crêem que o contato direto com os mortos pode ser conseguido por
meio de médiuns que, alegasse, têm a habilidade, enquanto num estado de transe, de
transmitir mensagens entre os mortos e os vivos. A crença na realidade de tais comu
nicações é o princípio vital de igrejas espiritualistas e os enlutados que consultam os
médiuns muitas vezes se impressionam com as descrições dos queridos mortos feitas
pelos médiuns. Ocasionalmente, um médium pode também demonstrar conhecimen
to da vida pregressa do falecido.9
Os Badhams reconhecem que em muitos casos os médiuns são charlatães
que baseiam suas comunicações em “arguta observação e pressuposições inteli
gentes”.10 Contudo, acreditam que há “evidência genuína para a sobrevivência
da personalidade humana sobre a morte corporal”1'. Eles apóiam sua crenÇa re
latando casos de vários membros da Sociedade para Pesquisa Psíquica que, após
a morte, começaram a enviar mensagens aos membros vivos do SPP para provar
que haviam sobrevivido à morte. 12
Não é nossa intenção debater a habilidade de alguns médiuns receberem
e transmitirem mensagens dos espíritos. A questão é se tais mensagens são de
espírito dos mortos ou dos espírito^satánjcos» Faremos referência a essa ques
tão no próximo estudo, em conexão com uma análise da consulta do rei Saul
à feiticeira de Endor (ISm 28:7-25). Nesse ponto, é suficiente observar que o
espiritismo ainda desempenha um destacado papel em fomentar a crença da
sobrevivência da alma após a morte. As pessoas que mediante médiuns têm
sido capazes de se comunicar com supostos espíritos de seus amados falecidos
encontram razões para crer na imortalidade da alma.
Experiências de quase-morte
Outro acontecimento significativo de nossa época, que tem contribuído para
promover a crença na sobrevivência da alma, é o estudo de “experiências de qua
se-morte”. Tais estudos baseiam-se em relatos de pessoas que foram ressuscitadas
de um quase encontro com a morte, e de médicos e enfermeiras
,que registraram
as experiências do leito de morte de alguns de seus pacientes.
As experiências relatadas por pessoas que tiveram um quase encontro com a
morte muitas vezes correm em paralelo com o que muitos crêem ser a vida dajjma--
QP^pãfaíso. Embora não haja dois relatos iguais, algumas das características comuns
são; a impressão de paz, a sensação de ser atraído rapidamente através de um espaço
sombrio de alguma espécie, flutuar numa condição de ausência de gravidade, corpo
espiritual, consciência de estar na presença de um ser espiritual, um encontro com
uma luz brilhante, muitas vezes identificada com Jesus Cristo ou um anjo, e uma
visão de uma cidade de luz.n Tais experiências são interpretadas como prova de que,
P-QT ocasião da morte, a alma deixa o corpo e vive numa condição desincorporada,
A VISÃO BÍBLICA DA MORTE
Os relatos de experiências de quase ׳morte não são novos. Podem ser en
contrados na literatura clássica, tais como a História da Igreja e Povo da Inglaterra,
pgjp venerável Beda, o Livro Tibetano dos Mortos, por Sir Edward Burnett Tvlor,
e a República, de Platão.14 Na República, Platão oferece um impressionante relato
de uma experiência de quase ׳morte que ele emprega para substanciar a crença na
imortalidade da alma. Ele escreveu:
Er, filho de A rm ênio... foi m orto em batalha, e quando os cadáveres foram levados
no décim o dia foi enco n trad o in tac to , e, tendo sido levado para casa, no m om ento
de seu funeral, no décim o-segundo dia, ao estar sobre a pira, reviveu, e, após ter re
cobrado a vida relatou o que, disse ele, havia visto no m undo do além . Ele disse que
quando sua alm a deixou o corpo ele viajou com um a grande com panhia e chegaram
a um a região m isteriosa onde havia duas aberturas lado a lado na terra, e acim a... no
céu duas outras, e que juízes estavam assentados en tre ambas, e que após cada julga
m ento eles indicavam aos v iajan tes que seguissem para a d ireita e para cim a pelo céu
com senhas a eles presas d ian te do juízo... e os injustos para tom arem o cam inho à
esquerda e para baixo, tam bém usando senhas sobre tu d o quan to lhes havia pesado
e que quando ele próprio se aproxim ava disseram -lhe que precisava ser m ensageiro
à hum anidade para con tar sobre esse ou tro m undo... C ontudo , com o e de que m odo
ele re to rnou ao corpo, disse que não sabia, mas sub itam en te recuperou a visão e viu-
se no alvorecer deitado sobre a pira funerária .1S
Piarão conclui sua história com este comentário revelador: “Assim o relato
foi conservado... E ele nos salvará se crermos nele... que a alma é imortal e que é
capaz de suportar todos os extremos de bem e mal”,16
Fica-se a imaginar que tipo de salvação a crença na imortalidade da alma
oferecerá a uma pessoa, A sobrevivência como uma alma ou espírito desíncorpo-
rado num mundo etéreo dificilmente se compara com a esperança bíblica da res
surreição da pessoa integral para uma vida real sobre este planeta restaurado à sua
perfeição original A essa questão retornaremos no capítulo final, que examina a
visão bíblica do mundo vindouro.
Estudos de experiências de quase-morte
Em nossos dias, o estudo de experiências de quase-morte ganhou grande
impulso a partir de quando o psiquiatra americano Raymond A. Moody a ele se
lançou pioneíramente. Seus dois livros motivadores desse impulso, Life After Life
[Vida após a Vida, publicado em português em 1975] e Rejfíecnoíis on Life After Life
[Reflexões sobre a vida após a vida] (1977), geraram uma grande quantidade de
outros livros, artigos e debates focalizados sobre experiências extracorpóreas.17
Mais recentemente, toí publicada grande quantidade de livros e artigos referentes
a experiências de quase-morte, alistando dois mil e quinhentos títulos.18
I m o r t a l id a d e o u R e ss u r r e iç ã o ?
Moody estudou 150 pessoas que tiveram experiências de quase-morte e, em al
guns casos, clinicamente mortas. A questão é como os dados devem ser interpretados.
O editor de Moody assegura que os relatos são “casos reais que revelam haver vida
após a morte19. 0 próprio Moody, contudo, é muito mais cauteloso. Ele explicitamen ״
te nega que tentou “construir uma prova de sobrevivência da morte corporal״ embora
considere os dados “altamente significativos״ para tal crença.20 Ele deixa em aberto a
possibilidade de conceber as experiências de quase-morte como evidências da imorta
lidade ou meramente o resultado de eventos fisiológicos terminais,
Não é nossa intenção examinar o suposto valor comprobatório de expe
riências de quase-morte para crer na sobrevivência da alma. Nossa autoridade
normativa para definir a natureza humana não são as experiências subjetivas de
quase-morte das p_essoasr mas a revelação objetiva que Deus nos propiciou em sua
Palavra (2Pe 1:19). Assim, somente três observações básicas sobre experiências de
quase-morte serão aqui consideradas;
Primeiro, há o problema de definir a morte. O editor de Lancet> revista dedi
cada à pesquisa médica, assinala que
somente um deliberado emprego de definições obsoletas de morte pode capacitar
alguém a reivindicar que algum indivíduo, sob condições clínicas, retornou para
contarmos o que jas além da morte, pois, por definição de trabalho, periodicamente
120 atualizado, a morte está simplesmente além do ponto do qual alguém possa retornar
para nos dizer o que quer que seja.21
Semelhantemente, o professor Paul Kurts comenta:
Não temos evidência real de que os indivíduos [dos relatos de quase-morte] tenham
de fato morrido. Tal prova não é impossível de obter: rigor morjis é um sinal e morte
cerebral é outro. O que os relatos realmente descrevem é um “processo de morte, ou
experiência de quase-morte, não a própria morte22.״
Em segundo lugar, como Paul e Linda Badham observam, precisamos nos
lembrar de que
qualquer pessoa que esteja suspensa entre a vida e a morte deve estar sofrendo
profunda tensão física e psicológica. Um cérebro carente de oxigênio, drogado por
analgésicos alucinógenos, ou excitado por febre, dificilmente tende a funcionar
apropriadamente e quem sabe que visões não poderíam ser atribuídas por essas
condições de perturbação.25
Algumas pesquisas demonstraram a semelhança que existe entre experiên
cias de quase-morte ç qs çfçitos causados por drogas psicodélicas.
Pesquisas modernas sobre a consciência têm revelado que essas semelhanças
podem ser reproduzidas por drogas em sessões psicodélicas. Essas experiências,
A VISÃO BÍBLICA DA MORTE
portanto, tendem a pertencer à gama de sessões psíquicas, que têm comprovado
não a vida após a morte, mas que a relação entre o “eu” consciente e o “eu" incor
porado é mais complexo do que se imaginava anteriormente.24
Por fim, como se pode estabelecer que as experiências de quase-morte sejam
“experiências reais” e não o produto da própria mente dos pacientes? E por que
se dá que quase todos os relatos de experiências de quase-morte focalizam experi
ências de felicidade e alcance do Céu, mas nenhum lampejo dos tormentos cha
mejantes do inferno? E evidente que quando as pessoas estão morrendo, preferem
sonhar á respeito da glória celestial, e não do sofrimento do inferno. Todavia, mes
mo as visões do Céu dependem grandemente da formação religiosa da pessoa,
Karlis Osis e Erlendur Haraldsson avaliaram os relatos de mais de 1.000 ex
periências de quase-morte nos EUA e na índia. Descobriram que a visão dos pa
cientes hindus era tipicamente indiana, enquanto a dos americanos era ocidental
e cristã. Por exemplo, uma mulher indiana de formação universitária teve a expe
riência de ser conduzida ao Céu sobre uma vaca, enquanto um paciente america
no que havia orado a São José encontrou o seu santo padroeiro na experiência.25
Tais relatos sobre experiências de quase-morte refletem as crenças pessoais dos
pacientes. Q que experimentaram no processo de. morrer quase certamente con
diciona-se às suas crenças pessoais.
Devemos sempre
,recordar que as experiências de quase-morte ou de leito de
morte são de indivíduos ainda vivos, ou cuja mente readquiriu consciência. Seja quaí
for sua experiência sob tais circunstâncias é parte de sua vida presente, não da vida
após a morte. A Bíblia traz um relatório de sete pessoas que foram levantadas dentre
os mortos (IRs 17:17-24; 2Rs 4:25-37; Lc 7:11-15; 8:41-56; lo 11:1-46; At 9:36-41;
20:9-11 ),,mas nenhuma delas teve uma experiência de pós-morte para compartilhar.
Lázaro, que foi trazido de volta à vida após estar clinicamente morto por
quatro dias, não trouxe qualquer relato de emocionantes experiências fora do
corpo. A razão para isso é simples: a morte, segundo a Bíblia, é a cessação da vida
da pessoa inteira, çorpo e alma. Não existe forma de vida consciente entre a morte
I e a ressurreição. Os mortos repousam inconscientemente em suassepulturas até
\tme Cristo os chame no glorioso dia de sua vinda,
M o v im e n t o N o v a E r a
A crença na vida consciente após a morte é popularizada hoje espedalmente
pelo movimento Nova Era.26 Não é fácil definir esse novo movimento popular
porque representa um complexo de organizações e indivíduos que compartilham
valores comuns e uma visão comum. Esses valores derivam do misticismo e ocul
tismo orientais e uma cosmovísão panteísta segundo a qual todos compartilham
daquele que é Deus, Eles prevêem uma “nova era” vindoura de paz e iluminação
maciça, conhecida como “Era de Aquário".
Im ortalidade o u R essurreição '
Os adeptos da Nova Era podem divergir sobre quando ou como começa a
Nova Era, mas todos concordam que podem apressar a nova ordem envolven
do-se na vida política, econômica, social e espiritual. De acordo com alguns
analistas sociais, o movimento Nova Era tornou-se uma destacada tendência
cultural de nosso tempo. Elliot Miller o define como wuma terceira proeminente
força social, competindo por domínio cultural com a religião judaico-cristã e o
humanismo secular27״.
Para os seguidores da Nova Era, a realidade última é um Deus panteístico
manifesto com consciência e força infinitas, impessoais. Os seres humanos são
parte da consciência divina e são separados de Deus somente em sua própria cons
ciência. Mediante técnicas específicas, como meditação, canto, dança e privações
sensoriais, os adeptos da Nova Era buscam experimentar a unidade com Deus.
Assim, a salvação para os adeptos é igualada à auto-realização mediante técnicas
espirituais especiais.
A LOUCURA DA CANALIZAÇÃO
Um aspecto importante do movimento Nova Era é a alegação de comunica
ção com inteligências humanas e extra-humanas que se foram. Este fenômeno é
chamado de “canalização”, mas tem corretamente sido chamado de “espiritismo
ao estilo da Nova Era”28. Miller acertadamente afirma que
o espiritismo desem penhou na história um papel im portante em virtualm ente todas
as formas de paganismo. O s que permitiram que espíritos empregassem seus corpos
dessa forma têm sido chamados por uma variedade de nomes, inclusive “vidente”,
“feiticeiro”, “curandeiro”, “oráculo”. Em nossa cultura, o termo comum tem sido
“médium”, mas em anos recentes d e tem sido abandonado em grande medida em
favor de “canal” ou “canalizador”, refletindo em parte, um desejo de romper com
estereótipos negativos que se têm associado com médiuns ao longo dos anos.29
Um “canalizador” é essencialmente uma pessoa que alega ser receptora dos
ensinos e sabedoria dos grandes espíritos do passado. O negócio de canalizar está
em expansão em todas as principais cidades americanas. Segundo o Los Angeles
Times, o número de conhecidos canalizadores profissionais aumentou de dois para
mais de mil numa década.50 Isso está obrigando os canalizadores a utilizarem psi
cologia da Avenida Madison [N.T.: centro novaiorquino de publicidade de grande
prestígio internacional] para vender seus serviços.
Uma propaganda de Taryn Krive, um canalizador popular, dá boa idéia dos
serviços oferecidos:
M ediante Taryin, espíritos-guia trazem seus ensinos e mensagens. Eles responderão a
suas perguntas sobre esta vida ou outras vidas, e ajudarão você a identificar as lições
A VISÃO BÍBLICA DA MORTE
de sua vida e desbloquear seus mais elevados potenciais para viver e amar... C onheça
seus espíritos-guia, A prenda a relem brar suas vidas passadas e libertar a influên
cia delas de seu presente. D esenvolva suas habilidades de canalização (canalização
consciente, escrita autom ática, canalização com transe ) .31
A pessoa que tem desempenhado um papel destacado na promoção do
movimento Nova Era, especialmente quanto à canalização, é a famosa atriz
Shirley MacLaine. Seus livros venderam mais de cinco milhões de exemplares,
A mini-série “Out on a Limb” [Suspenso em suspense (numa tradução livre)]
despertou interesse sem precedentes em canalização. MacLaine leva bastante
a sério o seu papel como principal evangelista da Nova Era, Seguindo-se à sua
mini-série para a TV, ela conduziu seminários de dois dias por toda a nação,
intitulados “Ligando-se com o Eu Superior”. Depois, empregou a receita dos se
minários para estabelecer um centro espiritual de 120 hectares perto de Pueblo,
Colorado. O objetivo do centro é propiciar um lugar confiável para as pessoas se
comunicarem com espíritos superiores.32
Um fator importante que tem contribuído para o êxito da Nova Era é sua
alegação de ligar as pessoas não só com os seus queridos que morreram, mas
também com os grandes espíritos do passado. Como destaca o parapsicólogo e
canalizador Alan Vaughan; “A emoção, o imediatismo desse contato com outra
consciência pode ser a força impulsora por detrás do fenomenal crescimento da
prática de canalização”.33
^ Morte como transição para uma existência superior
A comunicação com os espíritos dos mortos tem por base a crença de que
a morte não é o fim da vida, mas meramente uma transição para um plano de
çxistência superior que torna possível no devido tempo reencarnar-se, seja sobre
a terra ou outra parte. Virgínia Essene, que reivindica estar falando como um
canal para Jesus, declara: “A morte é uma entrada automática e quase imediata
na grande esfera do crescimento de aprendizagem e serviço a que já está bem
acostumado. Você simplesmente vive nesse nível superior de propósito, alegria
e entendimento”.34
Em muitas maneiras, o ponto de vista da Nova Era como entrada imediata
numa esfera mais elevada de viver reflete a crença tradicional cristã na sobre
vivência consciente da alma por ocasião da morte. Ambas as crenças podem
remontar à primeira mentira proferida pela serpente no Jardim do Éden: “E
certo que não morrereis” (Gn 3:4). Essa mentira tem atravessado os séculos com
efeitos devastadores sobre religiões tanto cristãs quanto não-cristãs.
Nesta análise penetrante do movimento da Nova Era, Elliot Miller observa
com perspicácia:
Im o rta lid a d e o u R e ssu r r e iç ã o ?
Tem sido feito notar corretamente por muitos observadores cristãos que o cerne'das
doutrinas de Nova Era/canalização, "sereis como Deus” e “não morrereis” foram as
primeiras proferidas pela serpente no jardim do Éden (Gn 3:4, 5). Acatado, então,
esse "evangelho”, produziu toda a miséria do mundo. Acatado agora, tornará sem
efeito tudo quanto Deus realizou em Cristo para remediar a situação do indivíduo
em questão.35
Miller está certo em destacar que a crença na imortalidade inerente pro
movida pela Nova Era hoje torna de nenhum efeito à provisão de salvação em
Cristo, uma vez que as pessoas pensam que já dispõem dos recursos para entrar
num nível mais elevado de existência após a morte. Desafortunadamente, Miller
deixa de reconhecer que o êxito da Nova Era em promover tal crença deve-se em
grande medida à crença tradicional cristã dualística quanto à natureza humana.״
Os cristãos que crêèm que o corpo é mortal e a alma imortal não têrcfmãiores
dificuldades em aceitar o ponto de vista da Nova Era quanto à transição para uma
esfera superior de existência das almas dos santos
,na glória paradisíaca.
C o n c l u s ã o
A pesquisa acima mostra como a mentira de Satanás “é certo que não morre
reis" (Gn 3:4) tem prevalecido em diferentes formas ao longo da história humana
até nossos dias. Enquanto durante a Idade Média a crença na pós-vida era pro
movida mediante representações literárias e artísticas da bem-aventurança dos
santos e do tormento dos pecadores, hoje tal crença é propagada numa forma mais
sofisticada por médiuns, paranormais, pesquisa “científica" em experiências de
qu ase-morte, e pela Nova Era e sua canalização com espíritos do passado.
Os métodos satânicos mudaram, mas seus objetivos são ainda os mesmos: fazer
as pessoas crerem na mçntíra de quer não, impor m o que façam, não morrerão^mas
se tornarão como deuses, vivendo,para sempre. Nossa únicaj)roteção contra tal
engano é um claro entendimento do que, a Bíblia ensina a respeito da natureza da
morte e o estado dos mortos1 A essas questões agora dedicaremos nossa atenção.
A NATUREZA DA MORTE
A m o r t e d e S ó c r a t e s e a d e C r is t o
Para ilustrar o ponto de vista bíblico da morte, Oscar Cullmann contrasta
a morte de Sócrates com a de Jesus. 36 Em seu livro Phaeào, Platão oferece uma
impressionante descrição da morte de Sócrates. No dia de sua morte, Sócrates
ensinou a seus discípulos a doutrina da imortalidade da alma e mostrou-lhes
A VISÃO BÍBLICA DA MORTE
como demonstrar tal crença por ocasião da morte. Ele explicou aos discípulos
como libertar a alma da prisão do corpo ocupando-se com as verdades eternas
da filosofia. Uma vez que a morte completa o processo de libertação da alma,
Platão nos diz que Sócrates defrontou a morte bebendo a cicuta em perfeita paz
e compostura, Para Sócrates, a morte era o maior amigo da alma porque a põe
em liberdade das cadeias do corpo.
Quão diferente foi a atitude de Jesus para com a morte! Na véspera de sua
morte, Jesus achava-se no Getsêmani “tomado de pavor e de angústia” (Mc 14:33)
e disse a seus discípulos: “A minha alma está profundamente triste até à morte” (Mc
14:34). Para Jesus, a morte não era um grande amigo, mas um temível inimigo, por
que o separaria de seu Pai. Ele não encarou a morte com a compostura de Sócrates,
que a defendeu pacificamente como uma amiga. Quando confrontado com a reali
dade da morte, Jesus clamou ao Pai dizendo; ״Pai, tudo te é possível; passa de mim
este cálice; contudo, não seja o que eu quero, e, sim, o que Tu queres” (Mc 14:36).
Jesus sabia que morrer significa separar-se de Deus. Assim, Ele clamou a
Deus porque não desejava ser abandonado pelo Pai, ou mesmo por seus discípu
los. Que contraste entre Sócrates e Jesus em seu entendimento e experiência da
morte! Cullmann observa que
o autor da Epístola aos Hebreus... descreve a paixão de Jesus “com forte clamor e
lágrimas, orações e súplicas a quem o podia livrar da morte” (Hb 5:7). Assim, de
acordo com a epístola aos Hebreus, Jesus chorou e clamou em face da morte. Aqui
está SócTates, calmamente e em boa compostura falando da imortalidade da alma;
alí está Jesus, chorando e clamando.37
O contraste é evidente, especialmente no cenário da morte. Sócrates bebeu
a cicuta com sublime calma. Jesus clamou: ״Deus meu, Deus meu, por que me
desamparaste?” (Mc 15:34). Isso não representa ter a “morte como amiga”, mas
como inimiga. Paulo acertadamente a chama de “último inimigo” ÇlCo 15:26),
que ao final será lançado no lago de fogo (Ap 20:14).
Se a morte libertasse a alma do corpo e assim tornasse possível que esta
desfrutasse comunhão com Deus, então Cristo a teria acolhido muito bem por
lhe oferecer a oportunidade de reunir-se com o Pai. Mas Jesus viu a morte como
separação de Deus, que é a vida e o Criador de toda vida. Ele sentiu essa separação
mais do que qualquer outro ser humano, porque Ele é e ainda está intimamente
ligado com Deus. Ele experimentou a morte em todo o seu horror, não somente
no corpo, mas também em sua alma. E por isso que exclamou: “Deus meu, Deus
meu, por que me desamparaste?” (Mt 27:46) .
O contraste entre a morte de Sócrates e a morte de Jesus nos ajuda a
apreciar a visão bíblica da morte. No pensamento grego, a morte do corpo
não era em sentido algum a destruição da vida real. No pensamento bíblico, a
Imortalidade ou Ressurreição?
morte é a destruição da vida toda criada por Deus. “Portanto, é a morte e não
o corpo que precisa ser vencida pela ressurreição".33 E por tal razão que a res
surreição de Jesus é tão fundamental para a fé cristã. Ela propicia a necessária
garantia de que a morte foi vencida para aqueles que aceitam a provisão de
salvação em Cristo.
Cullmann assinala que
a crença na imortalidade da alma não é crença num evento revolucionário. A imor
talidade, de fato, é somente uma asserção negativa: a alma náo morre, simplesmente
prossegue vivendo. A ressurreição é uma asserção positiva: o homem completo, que
realmente veio a morrer, é chamado de volta à vida por um novo ato de criação de
Deus. Algo aconteceu - um milagre da criação! Pois algo também aconteceu ante
riormente, algo temeroso: a vida formada por Deus foi destruída.39
Pecado e morte
Para entender a visão bíblica da morte precisamos remontar ao relato da
criação, onde a morte não é apresentada como um processo natural desejado por
Deus, mas como algo antinatural, oposto a Deus. A narrativa do Gênesis nos
ensina que a morte veio ao mundo como resultado do pecado. Deus ordenou a
Adão para não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal e acrescentou
a advertência: “Mo dia em que dela comerdes, certamente morrereis” (Gn 2:17).
O fato de que Adão e Eva não morreram no dia de sua transgressão tem levado
alguns a concluir que os seres humanos não morrem de fato porque possuem uma
alma consciente que sobrevive à morte do corpo.
Essa interpretação figurativa dificilmente pode ser defendida pelo texto, que
literalmente traduzido diz assim: “morrendo morrereis". O que Deus quis dizer,
simplesmente, é que no dia em que desobedecessem, o processo de morte começa
ria. De um estado em □ue lhes era possível não morrer (imortalidade condicionalL
passaram a uma condição ,gm que lhes era impossível não morrer (mortalidade
incondicional). Antes da queda, a garantia de imortalidade configurava-se pela
árvore da vida (Gn 3:22-23) e, em consequência, começaram a experimentar a
realidade do processo de mortalidade. Na visão profética da nova Terra, a árvore
da vida se acha em ambos os lados do rio como um símbolo do dom da vida eterna
concedido aos remidos (Ap 21:2),
O pronunciamento divino encontrado em Gênesis 2:17 estabelece uma clara
ligação entre a morte humana na Bíblia e a transgressão do mandamento de Deus.
Assim, a vida ou morte humana são dependentes da obediência ou desobediência
humanas a Deus. Este é um ensino fundamental da Bíblia, ou seja, 3e que a mor׳
te veio a este mundo em resultado da desobediência do homem (Rm 5:12; ICo
15:21h Isso não diminui a responsabilidade do indivíduo por sua participação
A VISÃO BÍBLICA DA MORTE
no pecado (Ez 18:4* 20). A Bíblia, contudo, faz uma distinção entre a primeira
morte, que todo ser humano experimenta em resultado do pecado de Adão (Rm
5:12; ICo 15:21), e a segunda morte experimentada após a ressurreição (Ap 20:6)
como salário pelos pecados pessoalmente cometidos (Rm 6:23).
A MORTE COMO SEPARAÇÃO DA ALMA DO CORPO
Uma questão importante que precisamos levantar a esta altura é o ponto de
vista bíblico da natureza da morte. Para ser específico: a morte é a separação da
alma do corpo mortal, de modo que quando o corpo morre, a alma sobrevive? Qu
a morte é a cessação da existência da pessoa integral, corpo e alma?
Ao longo da história tem-se ensinado aos cristãos que a morte é a separa
ção da alma imortal do corpo mortal, de modo que a alma sobrevive ao corpo
num estado desincorporado. Por exemplo, o Ntwo Catecismo da Igreja Católica
declara: “Pela morte a alma é separada do corpo, mas na ressurreição Deus con
cederá vida incorruptível
,ao nosso corpo, transformado pela reunião com nossa
alma”40. Augustus Strong define a morte em sua bem conhecida obra Systemanc
Theology [Teologia Sistemátical: *‘A morte física é a separação da alma do corpo.
Distinguimo-la da morte espiritual, ou a separação da alma de Deus”41.
Em sua Lectures in Systematic Theologe [Conferências em teologia siste
mática] (vastamente utilizada como livro de texto), o teólogo calvinista Henry 127
Clarence Thiessen se expressa de modo semelhante: *A morte física cem relação
com o corpo físico, a alma é imortal e como tal não morre”42. Em sua obra C/iris-
tian Dogmtítics [Dogmática cristã], Francis Pieper, um teólogo luterano conser
vador, afirma de modo muito claro o ponto de vista histórico da morte: UA morte
temporal não é nada mais do que uma separação profunda do homem, a divisão
da alma do corpo, o antinatural rompimento da união de alma e corpo criados
por Deus para serem um”.43 Declarações como essas poderia m ŝ y !mil tipi iradas.
uma vez que se encontram na maioria dos livros de texto de teologia sistemática
e em todos os mais destacados documentos confessionais..
O ponto de vista histórico acima quanto à natureza da morte como separa
ção da alma do corpo tem sido submetido a intenso ataque por muitos eruditos
modernos. Alguns exemplos são suficientes para ilustrar esse ponto. O teólogo
luterano Paul Althaus escreve:
A m o rte é m ais do q u e um p a rtir da a lm a do corpo . A pessoa, co rp o e alm a, é
en v o lv id a n a m o rte ... A fé c r is tã n ad a sabe sobre um a im o rta lid ad e d a p e rso n a
lid ad e ... A p en as sabe de um d e sp e rta r d a m orte rea l m e d ia n te o p o d e r de D eus,
H á ex is tên c ia após a m o rte so m e n te p o r um d e sp e rta m e n to d a re ssu rre ição da
pessoa in te g ra l.44
Althaus argumenta que a doutrina da imoitalidade da alma não faz justiça
à seriedade da morte, uma vez que a alma passa pela morte sem ser afetada.45
Ademais, a noção de que uma pessoa pode ser totalmente feliz e abençoada sem
o corpo nega a significação do corpo e esvazia a ressurreição de seu significado.46
Se os crentes já são abençoados no Céu e os ímpios jã estão sob tormentos no
inferno, por que o juízo final se faz ainda necessário?47 Althaus conclui que a
doutrina da imortalidade da alma divide o que deve permanecer junto: o corpo
e a alma, o destino do indivíduo e o do mundo.48
Em seu livro The Body [O Corpo}, John A. T. Robinson afirma: “A alma
não sobrevive ao homem - apenas se esvai, escorrendo com o sangue”49. Em sua
monografia Life After Death [Vida após a morte], Taito Kantonen faz esta aguda
observação: ״A noção cristã da morte está em pleno acordo com o ponto de
vista da ciência natural em toda sua extensão. O homem não difere do resto da
criação pOT ter uma alma que não pode morrer”50.
Até mesmo o Interpreter’s Dictionary of the Bible [Dicionário bíblico do intér
prete], de concepção liberal, em seu verbete sobre a morte declara explicitamente:
A partida da nejjíiesfi [alma] deve ser vista como uma figura de linguagem, pois não
continua a existir independentemente do corpo, mas morre com ele (Nnt 31:19;
Jz 16:30; Ez 13:19). Nenhum texto bíblico autoriza a declaração de que a "alma” é
separada do corpo no momento da morte. O ruach, "espírito”, que faz do homem
um ser vivente (cf. Gn 2:7), e que ele perde por ocasião da morte, não é, falandose
apropriadamente, uma realidade antropológica, mas um dom de Deus que retoma a
Ele ao tempo da morte (Ec 12:7).5i
O The International Standard Bible Enciclopédia [Enciclopédia Internacional
Padrão da Bíblia] reconhece que
sempre somos influenciados, em maior ou menor grau, pela idéia grega, platônica, de
que o corpo morre, mas a alma é imortal. Tal idéia é inteiramente contrária à consci
ência israelita e em parte alguma se acha no Antigo Testamento. O homem completo
morre quando na morte o espírito (SI 146:4; Ec 12:7), ou a alma (Gn 35:18; 2Sm 1:9;
lRs 17:21: ín 4:3E saí do homem. Não somente o seu corpo, mas sua alma também
retoma a uma condição de morte e pertence ao mundo invisível; portanto, o Antigo
‘ Testamento fala da morte da alma de uma pessoa (Gn 37:21; Nm 13:10; Du 22:21 \Jz
16:30; ló 36:14: SI 78:50).s;
Esse desafio da erudição moderna quanto ao ponto de vísta tradicional da
morte como separação da alma do corpo tem sido passado por alto há longo tem
po. E difícil crer que ao longo da maior parte de sua história, o cristianismo em
grande medida haja sustentado um ponto de vísta da morte e destino humanos tão
vastamente influenciado pelo pensamento grego, em lugar de sê-lo pelos ensinos
Imortalidade ou R essurreição?
A VISÃO BÍBLICA DA MORTE
das Escrituras. O que surpreende ainda mais é que nenhum montante de erudição
bíblica mudará a crença tradicional mantida pela maioria das igrejas quanto ao es
tado intermediário. A razão disso é simples. Conquanto eruditos individualmente
possam alterar seus pontos de vista doutrinários sem sofrerem consequências de
vastadoras, o mesmo não é verdade para com igrejas bem estabelecidas.
Uma igreja que introduzir uma mudança radical em suas posições doutriná
rias históricas solapa a fé de seus membros e assim a estabilidade da instituição.
Um exemplo disso é a Worldwide Church of God [Igreja de Deus Universal!, que
perdeu mais da metade de seus membros quando mudanças doutrinárias foram
introduzidas por seus dirigentes no princípio de 1995. O elevado custo de retificar
crenças religiosas denominacionais não deveria deter cristãos crentes na Bíblia
que estão comprometidos não em preservar crenças tradicionais por causa da tra
dição, mas em buscar constantemente um entendimento mais pleno dos ensinos
da Palavra de Deus em questões relevantes para sua vida.
Morte como cessação da vida
Quando pesquisamos a Bíblia em busca de uma descrição da natureza da
morte, encontramos muitas referências claras que não carecem praticamente de
interpretação. Em primeiro lugar, as Escrituras descrevem a morte como um re
tomo aos elementos dos quais o homem foi originalmente feito. Ao pronunciar a
sentença sobre Adão após sua desobediência, Deus disse: “No suor do teu rosto
comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois dela foste formado: porque tu és pó
e ao pó tomarás” íGn 3:19h Essa vívida declaração nos diz que a morte não é a
separação da alma do corpo, mas o término da vida de um indivíduo, que resulta
na decadência e decomposição de seu corpo. “Uma vez que o homem é criado de
matéria perecível, sua condição natural é a mortalidade (Gn 3:19)53.״
Um estudo das palavras “morrer”, “morte” e “morto” no grego e hebraico
revela que a morte é percebida na Bíblia como a privação ou cessação da vida.
A palavra comum hebraica com o significado de “morrer” é mutíi, que ocorre
no Antigo Testamento mais de 800 vezes. Na vasta maioria dos casos, mutíi é
empregada no sentido simples de morte de homens e animais. Não há qual
quer indício em seu emprego de qualquer distinção entre as duas. Um exemplo
claro disso se acha em Edesiastes 3:19, que diz assim: “Porque o que sucede
aos filhos dos homens, sucede aos animais; o mesmo lhes sucede: como morre
um, assim morre o outro”.
O termo hebraico muth (“morrer”), às vezes, é empregado como em por
tuguês, num sentido figurado, para denotar a destruição.ou eliminação de uma
nação (Is 65:15; Os 2:3; Am 2:2), uma tribo (Dt 33:6: Qs 13:11 ou uma cidade
(2Sm 20:19). Nenhum desses usos figurados sustenta a idéia de sobrevivência do
Imortalidade ou R essurreição?
indivíduo. Pelo contrário, descobrimos que a palavra muth é utilizada em Deu-
teronômio 2:16 num paralelo com tamam, que significa “ser consumido” ou “ser
terminado”. O paralelismo sugere que a morte é vista como o fim da vida.
A palavra grega comum correspondente a “morrer” é abothanem, usada
vezes no Novo Testamento. Com poucas exceções, o verbo denota a cessação de
vida. As exceções são príncipalmente usos figurativos
,que dependem do sentido
literal. Por exemplo, Paulo declara: “Pois o amor de Cristo nos constrange, julgam
do nós isto: um morreu por todos, logo todos morreram2) ״Co 5:14). E evidente
que isso não se refere à morte física, mas aos efeitos da morte de Cristo sobre a
posição do crente perante Deus. Poderíamos traduzir “portanto, todos morreram”
como “portanto, todos são contados como tendo morrido”. Nenhuma das utili'
zações literais ou figurativas valendo-se do hebraico muth ou do grego apothanein
sugere que a “alma” ou o “espírito” sobreviva à morte de um indivíduo.
Descrições da morte no Antigo Testamento
Acabamos de ver que os verbos em hebraico e grego para “morrer” não ex
plicam realmente o significado e natureza da morte, exceto para nos dizer que a
morte cios homens e animais é idêntica. Mais revelador é o uso do substantivo he-.
braico maveth empregado cerca de 150 vezes e geralmente traduzido por “morte”.
Do emprego de maveth no Antigo Testamento aprendemos três coisas importantes
a respeito da natureza da morte.
Em primeiro lugar, não há lembrança do Senhor na morte: “Pois na morte
Jímwth) não há recordação de Ti; no sepulcro quem te dará louvor?” ffiLfoS) · A
razão de não haver lembrança na morte é tão somente porque o processo de pen
samento cessa quando o corpo morre com o seu cérebro. “Sai-lhes o espírito e eles
tornam ao pó, nesse mesmo dia perecem todos os seus desígnios” (SI 146:4). Sendo
que na morte os “pensamentos perecem”, é evidente que não há alma consciente
que sobreviva à morte do corpo. Se o processo de pensamento que geralmente se
associa à alma sobrevivesse à morte do corpo, então os pensamentos dos santos não
pereceríam. Seriam capazes de se lembrar de Deus.. Mas o fato é que “os vivos sabem
que hão de morrer, mas os mortos não sabem coisa nenhuma, nem tampouco terão
eles recompensa, porque sua memória jaz no esquecimento” (Ec9:5).
Em segundo lugar, nenhum louvor a Deus é possível na morte ou sepultura.
“Que proveito obterás no meu sangue [mavedi] quando baixo à cova? Louvar-
te-á, porventura, o pó? Declarará ele a tua verdade?” (SI 30:9). Ao comparar a
morte com o pó, o salmista claramente mostra que não há consciência na morte
porque o pó não pode pensar. O mesmo pensamento é expresso no Salmo 115:17:
“Os mortos não louvam o Senhor, nem os que descem à região do silêncio". Aqui
o salmista descreve a morte como um estado de “silêncio”. Que contraste com a
A V1SÂO BÍBLICA DA MORTI־:
visão popular “barulhenta" da vida após a morte, onde os santos louvam a Deus
no Céu e os ímpios clamam em agonia no inferno!
Em terceiro lugar, a morte é descrita como um “sono". “Ilumina-me os olhos,
para que eu não durma o sono da morte” (SI 13:3). Essa caracterização da morte
como um “sono" ocorre freqüentemente no Antigo e Novo Testamentos porque
representa adequadamente o estado de inconsciência na morte. Brevemente exami
namos o significado da metáfora do “sono" para compreender a natureza da morte.
Alguns argumentam que a intenção das passagens que acabamos de citar e
que descrevem a morte como um estado de inconsciência “não é ensinar que a
alma do homem é inconsciente quando ele morre", e sim de que “no estado de
morte o homem não mais pode participar nas atividades do mundo presente”.51־
Em outras palavras, uma pessoa morta é inconsciente no que concerne a este
mundo, mas sua alma é consciente no que concerne ao mundo dos espíritos. O
problema com essa interpretação é que tem por base o pressuposto gratuito de que
a alma sobrevive à morte do corpo, um pressuposto que é claramente negado no
Antigo Testamento. Descobrimos que no Antigo Testamento a morte do corpo é
a morte da alma porque o corpo é a forma exterior da alma.
Em vários lugares, maveth [morte] é empregada com referência à segunda
morte. “Dize-lhes: Tão certo como eu vivo, diz o Senhor Deus, não tenho prazer
na morte do perverso, mas em que o perverso se converta do seu caminho, e
viva. Convertei-vos, convertei-vos dos vossos maus caminhos; pois, por que ha
veis de morrer, ó casa de Israel" (Ez 33:11; cf. 18:23, 32). Aqui a “morte do ímpio"
evidentemente não se refere à niorte natural que toda pessoa experimenta, mas
à morte infligida por Deus sobre os pecadores impenitentes no fim dos tempos.
Nenhuma das descrições literais ou referências figuradas à morte no Antigo Tes
tamento sugere a sobrevivência consciente da alma ou espírito à parte do corpo.
A morte é a cessação da vida para a pessoa integral.
Referências neotestamentárlas à morte
As referências do Novo Testamento à “morte”, termo traduzido do grego
thanatos, não são tão informativas com respeito à natureza da morte quanto as
encontradas no Antigo Testamento. A razão deve-se parcialmente ao fato de que
no Antigo Testamento muitas referências à morte são encontradas nos livros po
éticos ou de sabedoria, como Salmos, Jó e Eclesíastes. Esse tipo de literatura não
ocorre no Novo Testamento. Mais importante é o fato de que a morte é vista no )
Novo Testamento na perspectiva da vitória de Cristo sobre a morte. Esse é o tema f
dominante no Novo Testamento que condiciona a perspectiva cristã da morte. J
Mediante sua vitória sobre a morte, Cristo neutralizou o aguilhão da morte
(ICo 15:55): Ele aboliu a morte (2Tm 1:10); venceu o diabo que tinha o poder
Imortalidade o u R essurreição?
sobre a morte (Hb 2:14); tem nas mãos as chaves do reino da morte (Ap 1:18);
é o cabeça da nova humanidade como primícias dentre os mortos (Cl 1;18V. faz
com que os crentes sejam novas criaturas para uma viva esperança mediante sua
ressurreição dos mortos (IPe 1:3).
A vitória de Cristo sobre a morte afeta o entendimento do crente quanto
à morte física, espiritual e eterna. O crente pode defrontar a morte física com a
confiança de que a moTte foi tragada pela vitória de Cristo, o qual despertará os
santos adormecidos por ocasião de sua vinda (ICo 15:51-56L
Os crentes que estavam espiritualmente “mortos nos vossos delitos e pe
cados” (Ef 2:1; cf. 4:17-19: Mt 8:22) foram regenerados para uma nova vida em
Cristo (Ef 4:24). Os descrentes que permanecem espiritualmente mortos por toda
a sua existência e não aceitam a provisão de Cristo para sua salvação (Jo 8:21, 24),
no dia do juízo experimentarão a segunda morte (Ao 20:6: 21:8). Essa é a morte
eterna final da qual não há retomo.
Os sentidos figurados da palavra thanatos-morte dependem inteiramente
do significado literal como cessação da vida. Argumentar em favor da existência
consciente da alma à base do sentido figurado da morte é atribuir à palavra um
significado a ela estranho. ]$sq contraria regras literárias e gramaticais e destrói as
̂ ligações entre a morte física, espiritual e eterna.
A MORTE COMO UM SONO NO ANTIGO TESTAMENTO
132
Tanto no Antigo quanto no Novo Testamento a morte é muitas vezes descrita
como um ״sono״. Antes de tentar explicar a razão para o emprego bíblico da metáfora
do “sono״ para a morte, consideremos alguns exemplos. No Antigo Testamento, três
palavras hebraicas com o sentido de “sono” são empregadas para descrever a morte.
A palavra mais comum, shachav, é empregada na expressão que ocorre com
frequência ·de que fulano de tal “dormiu com os seus pais” (Gn 28:11; Dt 31:1&i2
Sm 7:12; lRs 2:1Q). Começando com sua aplicação inicial a Moisés (“Eis que estás
para dormir com teus pais”, Dt 31:16), e depois com Davi (“Quando teus dias se
cumprirem, e descansares com teus pais\2S m 7:12). e Jó (“Agora me deitarei no
pó”, ló 7:2 1 ), encontramos este belo eufemismo para a morte atravessando qual
fio ininterrupto por toda a extensão do Antigo e Novo Testamentos, findando
com a declaração de Pedro de que “os pais dormem” (2Pe 3:■4). Comentando sobre
essas referências, Basil Atkinson faz uma observação perspicaz: “Assim, os reis e
outros, que morreram, são tidos como dormindo com seus pais. Se seus espíritos
estivessem vivos noutro mundo, poderia ser dito de forma regular, sem qualquer
pista, que a pessoa real
,não estava de modo algum dormindo.7”55
Outra palavra hebraica para “dormir” é yashen. Essa palavra ocorre tanto
como um verbo no sentido de “dormir” Qr 51:39, 57; Sí 13:3) quanto como um
er
r/
fZ
tT
z/
A
i^
A VISÃO BÍBLICA DA MORTE
substantivo, “sono”. O último emprego é encontrado no bem conhecido verso de
Daniel 12:2: “Muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão, uns para a
vida eterna, e outros para vergonha e horror eternos.” Note-se que nessa passa
gem tanto os ímpios quanto os santos estão no pó da terra e ambos os grupos serão
ressuscitados no final.
Uma terceira palavra hebraica empregada para o sono da morte é shenafi. Jó faz
sua pergunta retórica: “O homem, porém, morre e fica prostrado; expira o homem,
e onde está?” Qó 14:10)· Sua resposta é: “Como as águas do lago se evaporam, e o
rio se esgota e seca, assim o homem se deita, e não se levanta: enquanto existirem
os Céus não acordará, nem será despertado do seu sono [sfienaM” (ló 14:11 e 12; cf.
Sa l 76:5; 90:5j. Aqui está uma descrição bem vívida da morte. Quando uma pessoa
exala o seu último suspiro, “o que é ele?”, ou seja, “o que é deixado dele?״ Nada. Ele
não mais existe. Toma-se como um lago ou rio cujas águas se secaram. Ele dorme na
sepultura e "não despertará” até o fim do mundo.
Ficamos a pensar: iria Jó apresentar uma descrição tão negativa da morte se
cresse que sua alma sobreviveria à morte? Se a morte introduzisse a alma de Jó
na presença imediata de Deus no Céu, por que ele fala de esperar até não mais
“existirem os Céus” Qó 14:11) e até ser “substituído” (ló 14:14)? E evidente que
nem Jó nem qualquer outro crente no Antigo Testamento sabia de uma existência
consciente após a morte.
A MORTE COMO UM SONO NO N O V O TESTAMENTO
A morte é descrita como um sono no Novo Testamento mais freqüente-
mente do que no Antigo. A razão pode ser que a esperança da ressurreição, que é
esclarecida e fortalecida pela ressurreição de Cristo, dá novo significado ao sono
da morte do qual os crentes despertarão por ocasião da segunda vinda de Cristo.
Assim como Cristo dormiu na sepultura antes de sua ressurreição, igualmente os
crentes dormem em suas tumbas enquanto esperam por sua ressurreição.
Há duas palavras gregas com o sentido de “sono” empregadas no Novo Tes
tamento. A primeira é koimao, empregada quatorze vezes para falar do sono da
morte. Um derivado desse substantivo grego é koimeeteerion, do qual deriva nossa
palavra “cemitério”. Incidentemente, a raiz dessa palavra é também a do termo
“lar-oi/tos”. Destarte, o lar e o cemitério estão ligados porque ambos são lugares
de dormida. A segunda palavra grega é katheudein, geralmente empregada para o
sono ordinário. No Novo Testamento é usada quatro vezes para o sono da morte
(Ml&24; M c 5:39: Lc 8:52: Ef 5:14; ITs 4 :1 4 ) .
Ao tempo da crucifixão de Cristo, “abriram-se os sepulcros e muitos corpos
de santos, que dormiam, [ícelcotmemenon] ressuscitaram” (Mt 27:52). No texto
original consta: “Muitos corpos dos santos adormecidos foram ressuscitados”. E
Im o r ta lid a d e o u R essu r r eiç ã o ?
óbvio que o que foi ressuscitado foi a pessoa integral, não só os corpos. Não en
contramos qualquer referência quanto a suas almas serem reunidas com seus cor
pos, certamence porque esse conceito é estranho à Bíblia .
Falando figuradamente da morte de Lázaro, Jesus declarou: “Nosso amigo ador
meceu, mas vou para despertá-lo” (To 1 1 :1 1 ). Quando Jesus percebeu que não tinha
sido compreendido, disse-lhes claramente: “Lázaro morreu” (lo 11:14). A seguir,
Jesus apressou-se a reassegurar a Marta: “Teu irmão há de ressurgir” (jo 11:23). ,
Esse episódio é significativo, em primeiro lugar, porque Jesus claramente
descreve a morte como um “sono” do qual os mortos despertarão ao som de sua
vo2. A condição de Lázaro na morte foi semelhante a um sono do qual alguém
desperta. Cristo disse: “Vou despertá-lo do sono” (Jo 11:11). O Senhor levou
a efeito sua promessa indo até a sepultura para despertar a Lázaro chamando:
“Lázaro, vem para fora. Saiu aquele que estivera morto tendo os pés e as mãos
ligados com ataduras e o rosto envolto num lençol” (Jo 11:43-44).
Esse despertar de Lázaro do sono da morte pelo som da voz de Cristo faz
paralelo com o despertar dos santos adormecidos no dia de sua gloriosa vinda,
Eles também ouvirão a voz de Cristo e sairão para a vida novamente. “Vem a
hora em que todos os que se acham nos túmulos ouvirão a sua voz e sairão”56
(Io 5:28; cf. 5:25), “Porquanto o Senhor mesmo, dada a sua palavra de ordem,
ouvida a voz do arcanjo e ressoada a trombeta de Deus, descerá dos Céus, e os
mortos em Cristo ressuscitarão primeiro” 57 .(lTs 4:16). Há harmonia e simetria
nas expressões “dormir” e “despertar” como empregadas na Bíblia, no sentido
de entrar e sair da condição da morte. As duas expressões corroboram a noção
de que a morte é um estado de inconsciência, do qual os crentes despertarão no
dia da vinda de Cristo.
L á z a r o não teve experiência de pós-vida
A experiência de Lázaro é também significativa porque ele passou quatro
dias na sepultura. Essa não foi uma experiência de quase-morte, mas uma ex
periência de morte real. Se, como popularmente se crê, a alma por ocasião da
morte deixa o corpo e vai para o Céu, então Lázaro teria tido uma experiência
impressionante para compartilhar a respeito dos quatro dias que teria passado
no paraíso. Os líderes religiosos e as pessoas teriam feito tudo ao seu alcance
para extrair de Lázaro tanta informação quanto possível sobre o mundo invisí
vel. Como Robertson Nichol assinala, “tivesse ele [Lázaro] aprendido alguma
coisa do mundo dos espíritos, isso teria sido expressado por ele”58. Tal infor
mação teria propiciado valiosas respostas às indagações da vida após a morte
sobre as quaís se debatia tão acaloradamente entre os saduceus e os fariseus (M.L
22:23, 28; Mc 12:18, 23; Lc 20:27 e 33).
A VISÃO BÍBLICA DA MORTE
Lázaro, contudo, nada tinha para compartilhar a respeito da vida após a
morte, porque durante os quatro dias que passou na sepultura, dormiu o sono
inconsciente da morte. O que é verdadeiro a respeito de Lázaro é também verda
deiro quanto a seis outras pessoas que foram levantadas da morte: o filho da viúva
(lRs 17:17-24): o filho da sunamita, (2Rs 4:18-37); o filho da viúva de Naim (Lç
7:11-15); a filha de ]airo(Lc 8:4 h 42. 49-56): Ta bit a (At 9:36-41); e Êutíco (At
20:9-11?). Cada uma dessas pessoas veio da morte como se tivesse estado num
profundo sono, com o mesmo sentimento e individualidade, mas sem qualquer
experiência de pós-vida para compartilhar.
Não há qualquer indicação de que a alma de Lázaro ou a das demais seis pes
soas trazidas da morte tenha ido para o Céu. Nenhuma delas teve uma "experiência
celestial" para narrar. A razão disso é que nenhuma delas ascendeu ao Céu. Isso é
confirmado pela referência de Pedro a Davi em seu discurso no dia de Pentecos
tes: "Irmãos, seja-me permitido dizer-vos claramente, a respeito do patriarca Davi,
que ele morreu e foi sepultado e o seu túmulo permanece entre nós até hoje” (At
2:29)- Alguns poderiam argumentar que o que estava na sepultura era o corpo de
Davi, não sua alma que havia ido para o Céu. Essa interpretação, porém, é negada
pelas explícitas palavras de Pedro: "Porque Davi não subiu aos Céus”71* (At 2:34). A
tradução de Knox diz assim; “Davi nunca subiu para o Céu”. A Bíblia de Cambridge
traz a seguinte nota: “Pois Davinão ascendeu... Ele desceu à sepultura e ‘dormiu com
seus pais.'"60 O que dorme na sepultura, de acordo com a Bíblia, não é meramente o
corpo, mas a pessoa integral que aguarda o despertar da ressurreição.
Paulo e os santos adormecidos
Nos dois grandes capítulos sobre a ressurreição em 1 Tessalonicenses 4 e 1
Coríntios 15, Paulo repetidamente fala daqueles que "dormiram” em Cristo (lTs
^ 4:13, 14, 15; ICo 15:6, 18, 20). Um exame de algumas das declarações de Paulo
lança luz sobre o que ele quis dizer ao caracterizar a morte
,como um sono.
Escrevendo aos tessalonicenses, que estavam lamentando o passamento de
alguns de seus entes queridos por terem adormecido antes de experimentar a
vinda de Cristo, Paulo lhes reassegura que assim como Deus ressuscitou a Jesus
dentre os mortos, Ele, mediante Cristo, "trará juntamente em sua companhia
os que dormem” (lTs 4:14). Alguns sustentam que Paulo está falando de almas
desincorporadas, que supostamente ascenderam ao Céu por ocasião da morte e
que retornarão com Cristo quando Ele descer à Terra em sua segunda vinda.
Tal interpretação ignora três coisas principais. Primeiro, nosso estudo
mostra que a Bíblia em parte alguma ensina que a alma ascende ao Céu por
ocasião da morte. Em segundo lugar, no contexto, Paulo não está falando de
almas imortais, mas sobre os "que dormem" (lTs 4:13: cf. v. 14) e dos "mortos
Im ortalidade ou Ressu rreiçã o?
em Cristo״ (lTs 4:16), “Os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro” de suas
tumbas (lTs 4:16) e não descerão do Céu. Não há indício de que os corpos
subam das sepulturas e as almas desçam do Céu para se reunirem aos corpos.
Tal noção dualística é estranha à Bíblia. O comentário de Leon Morris de que
“Paulo declara trará e não ‘levantará’”61 é inexato porque Paulo diz: Cristo
tanto levantará os mortos quanto os trará com Ele. Assim, o contexto sugere
que Cristo traz consigo os mortos que são primeiramente levantados, ou seja,
antes da trasladação dos crente vivos.
Em terceiro lugar, se Paulo realmente cresse que “os mortos em Cristo” não
estavam de fato mortos em suas sepulturas, mas vivos no Céu como almas desin-
corporadas, teria se aproveitado de sua bendita condição no Céu para explicar aos
tessalonicenses que a lamentação deles era sem sentido. Por que deviam lamentar
pelos seus amados, se estavam já desfrutando as bênçãos celestiais? A razão por
que Paulo não lhes deu tal encorajamento é, obviamente, o fato de que sabia que
os santos adormecidos não estavam no Céu, mas em suas sepulturas.
Tal conclusão apóia-se na garantia que Paulo dá a seus leitores de que os
cristãos vivos não se encontrariam com Cristo, por ocasião de sua vinda, antes
dos que haviam dormido. “Nós os vivos, os que ficarmos até à vinda do Senhor,
de modo algum precederemos os que dormem” (lTs 4:15). A razão é que “os
mortos em Cristo ressuscitarão primeiro, depois nós, os vivos, os que ficarmos,
seremos arrebatados juntamente com Ele entre nuvens, para o encontro do Se-
nhor nos ares, e assim estaremos para sempre com o Senhor” (lTs 4:16-17).
O fato de que os santos vivos se encontrarão com Cristo ao mesmo tempo
que os santos adormecidos indica que os últimos ainda não foram reunidos
com Cristo no Céu. Se as almas dos santos adormecidos já estivessem des׳
frutando comunhão com Cristo no Céu e devessem descer com Cristo para
a Terra por ocasião de seu segundo advento, então obviamente teriam uma
indiscutível prioridade sobre os santos vivos. Mas a verdade é que tanto os
crentes vivos quanto os adormecidos estão aguardando sua tão ansiada união
com o Salvador; uma união que ambos os grupos experimentarão ao mesmo
tempo, no dia da vinda de Cristo.
A discussão de Paulo sobre os santos ■adormecidos em í Corindos 15 con
firma muito do que já temos descoberto em 1 Tessalonicenses 4· Após afirmar a
importância fundamental da ressurreição de Cristo para a fé e esperança crista,
Paulo explica que “se Cristo não ressuscitou... os que dormiram em Cristo pe
receram” (ICo 15:18-19). Paulo dificilmente poderia dizer que os santos ador
mecidos teriam perecido sem a garantia da ressurreição de Cristo se cresse que
suas almas eram imortais e já estavam a desfrutar das bênçãos paradisíacas.
Se Paulo cresse assim, ele provavelmente teria dito que, sem a ressurreição de
Cristo, as almas dos santos adormecidos permaneceriam desincorporadas por
A VISÃO BÍBLICA DA MORTE
toda a eternidade. Paulo, porém, não faz tal alusão quanto a essa possibilidade,
porque cria que a pessoa integral, corpo e alma, teria “perecido” sem a garantia
da ressurreição de Cristo.
É significativo que no capítulo inteiro, dedicado à importância e dinâmica
da ressurreição, Paulo nunca dá indício de alguma suposta reunificação do corpo
com a alma por ocasião da ressurreição.
Se Paulo tivesse tal crença, dificilmente poderia ter evitado fazer algumas
alusões da reconexão de corpo e alma, especialmente em suas discussões da
transformação dos crentes de uma condição mortal para uma imoTtal na volta
do Senhor. Mas o único “mistério” que Paulo revela é que “nem todos dormi׳
remos, mas transformados seremos todos” (ICo 15:51). Essa transformação de
uma natureza perecível para uma imperecível ocorre para todos, mortos e vivos,
e ao mesmo tempo, ou seja, ao som da “última trombeta” (ICo 15:52). A trans
formação nada tem a ver com almas desincorporadas reconquistando a posse de
seus corpos ressurretos. Antes, é uma mudança da vida mortal para a imortal,
tanto para vivos como para mortos em Cristo, quando “o mortal se revestir da
imortalidade” (ICo 15:54)*
5 O SIGNIFICADO DA METÁFORA DO “ SON O״
O uso popular da metáfora do “sono” para descrever o estado dos mortos em
Cristo suscita a questão de suas implicações para a natureza da morte. Especiíica-
mente, por que é essa metáfora empregada e que lampejos podemos legitimamen-
te extrair dela a respeito da natureza da morte? Há três principais razões para o
uso da metáfora do “sono” na Bíblia. Primeiramente, há uma semelhança entre o
“sono” dos mortos e o “sono” dos vivos. Ambos são caracterizados por uma con
dição de inconsciência e inatividade que é interrompida por um despertar. Assim,
a metáfora do “sono” representa adequadamente o estado de inconsciência dos
mortos e seu despertar no dia do retorno de Cristo.
Uma segunda razão para o emprego da metáfora do “sono” i..&ügeii,da pelo
fato de tratar-se de uma figura de linguagem para representar a morte que inspira
esperança. Deixa implícita a segurança de um despertar posterior. Como vai uma
pessoa dormir à noite na esperança de despertar pela manhã, também o crente
adormece no Senhor com a garantia de ser despertado por Cristo na manhã da
ressurreição. Albert Bames assinala de modo adequado;
Nas Escrituras o sono é empregado para sugerir que a morte não será final: haverá
um despertar desse sono, ou uma ressurreição. E uma expressão bela e tema, remo
vendo tudo quanto é sombrio na morte, e enchendo a mente com a idéia de tran
quilo repouso após uma vida de lutas, com uma referência a uma futura ressurreição
com faculdades renovadas e aumentadas.62
Imortalidade ou Ressurreição?
Quando ouvimos ou dizemos que uma pessoa morreu, automaticamente
pensamos que não há mais esperança de trazer esse alguém à vida. Mas quando
dizemos que uma pessoa está dormindo no Senhor, expressamos a esperança de
sua restauração à vida no dia da ressurreição. Bruce Reichenbach observa que a
metáfora do “sono” não é somente uma bela maneira de falar sobre a morte, mas,
mais importante que isso,
sueere vigorosamente que a morte não é o fim da existência humana« Assim como
uma pessoa que está dormindo pode ser acordada, também os mortos, como ador
mecidos”, têm a possibilidade de serem recriados e viver novamente. Este é, talvez,
o significado do difícil relato de^dateilá&láss, no qual Jesus declara que a menina
não morreu, mas estava apenas dormindo. As pessoas que a consideravam morta
não tinham esperança para ela. Contudo, em vista de que Jesus a considerou ador
mecida, Ele viu que havia de fato esperança de que ela pudesse ser ressuscitada
para viver novamente. Ele viu uma potencialidade nela que outros, inconscientes
do poder de Deus, não podiam ver. A metáfora do "sono”, portanto, não descreve
o estado ontológico dos mortos [isto é, a condição do sono], mas, refere-se muito
mais à possibilidade dos falecidos; de que embora agora não mais existam, pelo
poder de Deus podem ser recriados para viver novamente.^
O SO N O DA M ORTE COM
,O INCONSCIÊNCIA
Uma terceira razão para o uso dajnetáfora do “sono” é sugerida pelo fato de
que não há consciência do lapso de tempo no sono. Assim, a metáfora propicia
uma representação adequada do estado de inconsciência dos falecidos entre a
morte e a ressurreição. Eles não têm consciência da passagem do tempo. Em seus
primeiros escritos, Lutero expressou o seu pensamento de uma forma bem vívida:
Assim como alguém que caí no sono e atinge a manhã sem esperar quando des״
perta, sem saber o que lhe ocorreu, de igual modo subitamente despertaremos no
ultimo dia sem saber como chegamos à morte e por ela passamos”64. Novamente
Lutero escreveu: ״Dormiremos até que Ele venha e bata na pequena tumba e diga:
Doutor Martinho, erga-se! Então me levantarei num momento e serei feliz com
Ele para sempre”65.
Para efeito de precisão, deve-se assinalar que mais tarde Lutero rejeitou em
grande escala a noção de sono inconsciente na morte, supostamente devido ao
vigoroso ataque de Calvino a essa doutrina. Em seu Commenuxry on Genesis [Co
mentário sobre Gênesis], que redigiu em 1537, Lutero comenta: “A alma que par
tiu não dorme nessa maneira [sono regular]; é, falando-se mais apropriadamente,
desperta e tem visão e conversação com os anjos e com Deus”60. A mudança de
posição de Lutero do estado inconsciente para consciente na morte apenas seiyg_
para mostrar que mesmo reformadores influentes não estavam isentos de pressões
, teológicas de seu tempo.
i i . V l o r v w u i u L i v ^ n l / / i «-
A semelhança de Lutero, a maioria dos cristãos hoje crê que a metáfora do 41sono”
não é empregada na Bíblia para ensinar o estado inconsciente, mas que “haverá uma
ressurreição, um despertar67״. Alguns eruditos alegam que a morte é comparada a um
sono “não porque a pessoa esteja inconsciente, mas porque os mortos não retomam
à Terra nem estão cônscios do que se passa onde outrora viveram’1.08 Em outras pala
vras, os mortos estão inconscientes no que tange ao que acontece sobre a Terra, mas
bastante conscientes quanto a sua vida no Céu ou inferno.
Essa conclusão não tem por base as Escrituras, mas o emprego da metáfora
de ,*sono’1 na literatura intertestamentária. Por exemplo, Enoque, datado de cerca
do ano 200 a.G, tala dos justos como tendo “um longo sono11 (100:5), mas suas
almas estando conscientes e ativas no Céu (102:4, 5; c í 2 Baruque 36:11; 2 Esdras
7:2). Após examinar essa literatura, John Cooper conclui: “As metáforas de sono
e descanso são empregadas quanto a pessoas no estado intermediário que estão
conscientes e ativas, mas não em formas corporais, terrenas”69.
O significado bíblico da metáfora do “sono״ não pode ser decidido com
base em seu emprego na literatura intertestamentária, porque, como vimos,
durante esse período os judeus helenistas tentaram harmonizar os ensinos do
Antigo Testamento com a filosofia dualística grega de seu tempo. O resultado
foi a adoção de crenças tais como a imortalidade da alma, a recompensa ou
punição dadas imediatamente após a morte e orações pelos mortos. Taís crenças
são estranhas à Bíblia.
Nosso estudo da metáfora de “sono" no Antigo e no Novo Testamento
demonstrou que a metáfora deixa implícito um estado de inconsciência que
perdurará até o despertar da ressurreição. É digno de nota que em 1 Coríntios
15, Paulo emprega 16 vezes o verbo egetro, que literalmente significa “despertar”
do sono.'0 O reiterado contraste entre o dormir e o acordar é impressionante.
À Bíblia emprega o termo “sono” com frequência porque envolve uma verdade
vital: a de que os mortos que dormem em Cristo estão inconscientes de qualquer
lapso de tempo até sua ressurreição. O crente que morre em Cristo adormece
e descansa inconsciente até ser despertado quando Cristo o chamar de volta à
vida por ocasião de sua vinda,
O SENTIDO E FUNDAMENTO DA IMORTALIDADE
A imortalidade na Bíblia não é uma posse humana inata, mas um a tribu to
divino. O termo “imortalidade” deriva do grego athanasia, que significa “ausêiv
cia de morte”, e, portanto, existência infindável. Esse termo ocorre somente
duas vezes; primeiro com relação a Deus, “o único que possui imortalidade”
(lTm 6:16) e, em segundo lugar, com relação à mortalidade humana que deve
revestir-se da imortalidade_£iCo !5;.53J por ocasião de sua ressurreição. A últi׳
Im o r ta lid a d e o u R essurreição?
ma referência nega a noção de uma imortalidade natural da alma, porque decla-
ra que a imortalidade é algo de que os santos ressuscitados se ״revestirão״. Não
é algo de que já sejam possuidores,
base da imortalidade’1, como declara Vem Hannah, “é soteriológica e não
an tropologica”. 71*Q que isso significa é que a imortalidade é um dom divino aos
salvos e não uma possessão humana natural. Como R T. Forsyth declarou, “uma
segura crença na imortalidade não se assenta onde a filosofia a coloca, mas onde a
religião a situa, Não se fundamenta sobre a natureza do organismo psíquico, mas
sobre sua relação com Outro”,72 Este “Outro” é Jesus Cristo, que “não só destruiu
a morte, como trouxe à luz a vida e a imortal idade” (2Tm
Em parte alguma a Bíblia sugere que a imortalidade é uma qualidade na
tural ou direito dos seres humanos. A presença da “árvore da vida” no jardim
do Eden indica que a imortalidade era condicional à participação do fruto de
tal árvore. As Escrituras ensinam que a imortalidade deve ser “buscada” (Rm
2:7) e “revestida” (ICo É, como a “vida eterna״, um dom de Deus (Rm
6:23) a ser herdado (Mt 19:29) por conhecer a Deus ()o 17:3) através de Cristo
(Jo 14:19; 17:2; Rm 6:23). A perspectiva de Paulo da imortalidade está liga
da unicamente à ressurreição de Jesus (ICo 15) como fundamento e penhor
da esperança do crente.75 Os que insistem em encontrar a idéia filosófica de
imortalidade da alma na Bíblia ignoram a revelação de Deus e inserem idéias
*40 do dualismo grego na fé bíblica.
C onclusão
A crença tradicional e popular de que a morte não é a cessação da vida
para a pessoa integral, mas a separação da alma imortal do corpo mortal, pode
ser identificada com a mentira de Satanás “E certo que não morrereis” (Gn 3:4).
Essa mentira persiste em diferentes formas ao longo da história humana até" o
presente. Hoje, a crença da sobrevivência da alma, seja no paraíso ou no infer
no, é promovida não por meio das toscas representações literárias e artísticas
da Idade Média, mas por meio da polida imagem de médiuns, paranormais, de
sofisticadas pesquisas “científicas” em experiências de quase-morte, e da popu
lar canalização da Nova Era com espíritos do passado. Os métodos de Satanás
mudaram, mas seu objetivo é o mesmo: fazer as pessoas crerem na mentira de
que não importa o que façam, não morrerão, mas se tornarão como deuses para
viver para sempre.
O ponto de vista tradicional da morte limita a experiência da morte ao cor
po, uma vez que a alma continua sua existência. Vem Hannah apropriadamente
declara que “tal redefinição radical da morte é, de fato, uma negação da morte
- uma definição, sem duvida, que a ‘sutil serpente’ de Gênesis 3 acharia muito
A VISÃO BÍBLICA DA MORTE
atraente”74. A Bíblia leva a morte muito mais a sério. A morte é o último inimigo
(lCo 15:26) e não o libertador da alma imortal. Como Oscar Cullmann destaca
que “a morte é a destruição de toda a vida criada por Deus. Portanto, é a morte, e
não o corpo, que deve ser vencida pela ressurreição”/ 5
Helmut Thielicke fez a profunda observação de que a idéia de imortalidade
da alma é uma forma de escapismo que permite à pessoa “real” evadir-se da morte.
É uma tentativa de desarmar a morte. Ele prossegue explicando que
podemos apegar-nos ídealisticamente a alguma “região inviolável do ego”, mas a
morte não é um "passar adiante”, e sim um "descer", e não deixa qualquer espa
ço para o romanticismo ou idealismo. Não devemos desvalorizar nem obscurecer
a realidade da sepultura mediante a idéia da imortalidade. A perspectiva cristã é a
ressurreição, não a imortalidade da alma/
,básicos: (1) o cíássico e (2) o cristão} O primeiro procede da filosofia
grega e o segundo do ensíno da Bíblia. O termo "cristão” para o último ponto de
vista pode ser enganoso, porque, como veremos, a vasta maioria dos cristãos ao
longo dos séculos tem sido grandemente influenciada pela visão clássica da natu
reza humana, que consiste de um corpo mortal e de uma alma imortal. Portanto,
prefiro chamar ao segundo ponto de vista “bíblico”, porque, como este estudo
demonstra, reflete os ensinos da Bíblia.
O DUALISMO CLÁSSICO
O ponto de vista clássico da natureza humana deriva grandemente dos escritos
de Platão, Aristóteles e dos estóicos. A ênfase dessas filosofias recai sobre a distinção
entre os componentes material e espiritual da natureza humana. No pensamento
platônico, a natureza humana é tanto um componente material quanto espiritual.
O componente material é o corpo, temporário e essencialmente mau; e o compo
nente espiritual é a alma (psyc/iê) ou a mente (nous)> que é eterna e boa. O corpo
humano é transitório e mortal enquanto a alma humana é permanente e imortal.
Por ocasião da morte, a alma é liberada da prisão corporal onde esteve sepultada por
um tempo. Historicamente o pensamento cristão popular tem sido profundamente
influenciado por esse entendimento dualístico, anribíblico, da natureza humana. As
implicações de longo alcance da visão clássica da natureza humana para crenças e
práticas cristãs são incalculáveis. Vamos refletir a respeito delas brevemente.
H o u s m o B íblico
O ponto de vista bíbtico da natureza humana é essencialmente holístico [in
tegral] ou monístico. A ênfase bíblica é sobre a unidade do corpo, alma, e espírito,
cada um sendo parte de um organismo indivisível. Sendo intenção deste livro no
seu todo articular a visão holística da natureza humana, faço aqui apenas refe
rência a duas diferenças significativas com o ponto de vista clássico. A primeira
é a de que o ponto de vista holístico da natureza humana tem por base a crença
de que o ato de criação material deste mundo, inclusive a do corpo humano, é
“muito bom” (Gn 1:31). Não há dualismo nem contradição entre o material e o
espiritual, o corpo e a alma, a carne e o espírito, porque fazem todos parte da boa
criação de Deus. A redenção é a restauração da pessoa integral, corpo e alma, e
não a salvação da alma à parte do corpo.
Um segundo contraste com o ponto de vísta clássico é o de que a natureza
humana não foi criada inatamente imortal, mas com a capacidade de tomar-se
imortal. Os seres humanos não possuem um corpo mortal e uma alma imortal;
possuem um corpo mortal holístico e alma que pode tornar-se imortal. A imor־
O DEBATE SOBRE A NATUREZA E O DESTINO HUMANOS
talidade ou vida eterna é o dom de Deus àqueles que aceitam sua provisão de
salvação. Os que rejeitam o plano de'Deus para sua salvação por fim experimen
tarão a destruição eterna, não o tormento eterno num inferno de fogo a queimar
infindavelmente. A razão é simples; a imortalidade é concedida como recompensa
aos salvos, não como uma retribuição aos não-salvos.
Aqui estão as boas-novas. Embora Adão e Eva fossem criados mortais (com
a possibilidade de se tornarem imortais por partilharem da árvore da vida) e hoje
sejamos nascidos como mortais, podemos receber a imortalidade se aceitarmos o
dom divino da vida eterna. A imortalidade é um dom divino e não uma possessão
inata do homem. E condicional a nossa disposição de aceitar a graciosa provisão
para a salvação de nossa natureza total, corpo e alma. Assim, o ponto de vista bí
blico é também referido como imortalidade condicionaly porque é oferecida segundo
os termos e condições de Deus.
O DEBATE CORPO*׳ ALMA
Alguns leitores podem pensar que a questão corpo-alma é um tema supe
rado e que ninguém se interessa mais por isso hoje. Escrever um livro sobre tal
tópico pode ser visto como uma perda de tempo. O fato é que a questão cor
po-alma está longe de ser um tema irrelevante e morto. O recente suicídio em
massa numa mansão em San Diego, de 39 pessoas que desejavam deixar para
trás o “container” de seus corpos a fim de alcançar com suas almas o cometa
Hale-Bopp faz-nos lembrar quão atual é a questão alma-corpo. O interesse na
vida por vir parece ser maior hoje do que em qualquer época anterior.
Durante a Idade Média, a crença na vida após a morte era promovida mediante
representações supersticiosas literárias e artísticas da bem-aventurada condição dos
santos, e tormento dos pecadores. Hoje tal crença é propagada em formas mais sofis
ticadas por meio de médiuns, paranormais, pesquisas “científicas” com experiências
de quase-morte e contatos da Nova Era com os espíritos do passado. O resultado
de tudo isso é que a questão corpo-alma está atraindo atenção sem precedentes,
mesmo na comunidade acadêmica. Uma pesquisa da literatura erudita produzida
em anos recentes claramente demonstra que esta questão está sendo calidamente
debatida por eruditos destacados de diferentes confissões religiosas.
A questão central é se a alma pode sobreviver e funcionar à parte do corpo. Em
oitiras palavras, é a natureza humana constituída de modo tal que, por ocasião da
macte, a alma, isto é, a parte consciente, deixa o corpo e continua a existir enquan
to o ״Container” se desintegra? Tradicionalmente, os cristãos em sua vasta maioria
têm respondido afirma ti vamente a esta indagação. Têm crido que entre a morte e a
ressurreição final do corpo, Deus preserva a existência de suas almas humanas de-
sãncorporadas. Por ocasião da ressurreição, seus corpos materiais são juntados a seus
espíritos, assim intensificando o prazer do paraíso ou a dor do inferno.
Im o r t a l id a d e o u R e s s u r r e iç ã o ?
' A Esse ponto de vista tradicional e popular tem defrontado intenso ataque em anos״־
recentes. Um crescente número de proeminentes eruditos evangélicos está abando
nando a visão clássica, dualística, da natureza humana, que vê o corpo como mortal,
pertencendo ao mundo inferior da natureza, e a alma como imortal, pertencendo ao
reino espiritual e sobrevivendo à morte do corpo. Em lugar disso, estão acatando a
perspectiva holística bíblica da natureza humana pela qual a pessoa integral, corpo e
alma, experimenta a morte e a ressurreição.
Vários fatores têm contribuído para o abandono do dualismo clássico por parte
de muitos eruditos. Um deles é um renovado estudo do ponto de vista bíblico da na
tureza humana. Um detido exame dos termos bíblicos básicos usados para o homem
(corpo, alma, espírito, carne, mente e coração) tem levado muitos eruditos a reconhecer
que não indicam componentes independentes, mas a pessoa integral vista de.diferen
tes pontos de vista. “A erudição recente tem reconhecido”, escreve Eldon Ladd, “que
termos tais como corpo, alma e espírito não são faculdades distintas, separáveis, do
homem, mas diferéntes modos de ver o homem integral.”3
Virtualmente, qualquer parte do corpo pode ser usada na Bíblia para representar
o ser humano completo. Não há dicotomia entre um corpo mortal e uma alma imortal
que sobrevive e funciona à parte do corpo, Tanto o corpo como a alma, a carne e o
espirito na Bíblia são partes da mesma pessoa e não “se separam1' na morte.
O DUALISMO SOB ATAQUE
Numerosos estudiosos da Bíblia em tempos recentes têm argumentado que
os escritores do Antigo e Novo Testamentos não operam sob uma ótica dualís
tica da natureza humana, mas segundo uma visão monística e holística. Seus
estudos são discutidos nos capítulos seguintes. O resultado desses estudos é que
muitos hoje estão questionando ou mesmo rejeitando a noção de que as Escri
turas ensinam a existência de almas à parte do corpo após a morte.
Historiadores eclesiásticos apóiam essas conclusões alegando que uma perspec
tiva dualística da natureza humana e a crença na sobrevivência de almas desincorpo-
radas foram introduzidas no cristianismo pelos pais da igreja, que eram influenciados
pela filosofia dualística de Platão. Isso explica
,por que essas crenças tomaram-se am
plamente aceitas na igreja cristã, apesar de serem estranhas aos ensinos bíblicos.
Filósofos e cientistas também têm contribuído para o ataque maciço contra
o tradicional ponto de vista dualístico da natureza humana. Filósofos têm atacado
os argumentos tradicionais de que a alma é uma substância imortal que sobrevive
à morte do corpo. Eles têm proposto teorias alternativas segundo as quais a alma
é um aspecto do corpo humano, e não um componente separado.
Os cientistas também têm desafiado a crença na existência independente
da alma demonstrando que a consciência humana é dependente do cérebro e por
esse influenciada. Por ocasião da triorte, o cérebro cessa de funcionar e todas as
formas de consciência detêm-se. Para os cientistas, a cessação de codas as funções
mentais por ocasião da morte sugere ser altamente improvável,que as funções
mentais atribuídas à alma possam· sér executadas depois da morte.
Esses ataques concentrados sobre o dualismo por eruditos bíblicos, Historia-
dores eclesiásticos, filósofos e cientistas têm levado cristãos liberais e mesmo con
servadores a rejeitarem a perspectiva duaJística da natureza humana. Em seu livrò
Body, Soul and Life Everlasting (Corpo, alma e vida eterna), John W. Cooper, re
sume o resultado desse desenvolvimento, declarando: “Os liberais rejeitam-no lo
dualismo] como fora de moda é não mais sustentável intelectualmente. E alguns
protestantes conservadores alegaram que uma vez que podemos seguir somente
as Escrituras, e não as tradições humanas, se o dualismo antropológico é uma tra
dição humana não-baseáda nas Escrituras, devemos reformular nossas confissões
e expurgá-las de tais excrescências da mentálidade grega. A distinção corpo *׳alma
tem sofrido severo ataque de diversas tendências.”4
O DEBATE SOBRE A NATUREZA E O DESTINO HUMANOS
Os DUALISTAS ESTÃO PREOCUPADOS
Essas ocorrências têm despertado sérias preocupações de parte daqueles que
sentem que o seu entendimento dualístico tradicional da natureza humana está sen- ,
dose veramente ameaçado ou solapado. O livro de Cooper representa uma das mui
tas tentativas de reafirmar b tradicional ponto de vista dualístico em resposta aos
ataques contra o dualismo. A razão para essa reação é bem expressa por Cooper:
. Se o que eles [os eruditos] estão dizendo é verdade, então duas conclusões pertur
badoras se seguem de imediato: primeiro, a doutrina afirmada pela maior parte da
igreja cristã desde os seus primórdios é falsa; Uma segunda consequência è mais
pessoal e existencial - o que milhões de cristãos crêent que se dará quando morrerem
é também um engano.5
Cooper está profundamente preocupado com o custo de abandonar o enten
dimento dualístico tradicional da natureza humana. Ele escreve:
O mais óbvio é que as crenças que virtualmente todos os cristãos comuns man
têm sobre o além-túmulo devem ser também descartadas. Se a alma não é o ttpò
de coisa que pode ser desligada de seus cotpos, então na realidade não existímos
entre a morte e a ressurreição, seja com Cristo ou em alguma parte, seja cons-
. ciente ou ínconscientemente. Essa conclusão transmitirá a muitos cristão? um
Im o r t a l id a d e o u R e s s u r r e iç ã o ?
nível de ansiedade existencial. Um custo mais geral é a perda de outra tábua na
plataforma da crença cristã tradicional, arrancada e lançada no picotador da
erudição moderna.6
Não há dúvida de que a moderna erudição bíblica está causando grande
ansiedade existencial” a milhões de sinceros cristãos que crêem em suas almas״
desincorporadas indo para o céu por ocasião da morte. Qualquer desafio a crenças
tradicionalmente acariciadas pode ser desvastador. Contudo, os cristãos compro״
metidos com a autoridade normativa das Escrituras devem dispor״se a reexaminar
as crenças tradicionais, e mudá-las caso se revelem antibíblicas.
Fortes reações emocionais são de se esperar de parte daqueles cujas crenças
são desafiadas pela erudição bíblica. Oscar Cullmann, por exemplo, viu ״se ferre״
nhamente atacado por muitos que faziam fortes objeções a seu livro hnmortality
of the Soul or Resurrcction of the Dead? (Imortalidade da alma ou ressurreição dos
mortos?) Ele escreveu: “Nenhuma de minhas publicações provocou tal entu״
siasmo ou tão violenta hostilidade."7 De fato, a crítica tornou״se tão intensa e
tantos revelaram׳ se ofendidos com suas declarações que ele decidiu manter-se
de liberadamente em silêncio por um tempo. Devo acrescentar que Cullmann
não se deixou impressionar pelos ataques contra o seu livro porque entende
serem baseados não em argumentos exegéticos, mas em considerações de ordem
emocional, psicológica e sentimental.
T áticas de pressão
Em alguns casos, a reação tem tomado a forma de pressão. O respeitado teó
logo canadense Clark Pínnock menciona algumas das “táticas de pressão” usadas
para desacreditar aqueles eruditos evangélicos que abandonaram o ponto de vista
dualístico tradicional da natureza humana e sua relacionada doutrina de tormen
to eterno num inferno de fogo. Uma das táticas tem sido associar tais teólogos
com liberais ou com denominações tidas por sectárias, como a dos adventistas.
Escreve Pínock;
Parece que um novo critério para a verdade foi descoberto, segundo o qual, se os
adventistas ou os liberais mantêm algum ponto de vista, esse deve estar errado.
Aparentemente, a defesa de uma verdade pode ser decidida por sua associação e não
precisa ser testada por critérios públicos em debate aberto. Tal argumento, embora
inútil em discussão inteligente, pode surtir efeito com os ignorantes que sâo ludibria
dos por tal retórica.8
A despeito das táticas de pressão, o ponto de vista holístico da natureza
humana que nega a imortalidade da alma e, em conseqüência, o tormento eterno
dos perdidos no inferno, ganha espaço entre os evangélicos. Seu endosso público
U DEBATE SOBRE A NATUREZA E O DESTINO HUMANOS
por íohn R. W, Stott. pregador popular e teólogo britânico altamente respeitado,
está decerto encorajando tal tendência. Escreve Pinnock:
Numa deliciosa peça de ironia, isto vem criando utna medida de crédito por asso
ciação, contrariando as táticas mesmas usadas contra ela. Tem-se tornado quase
impossível alegar que somente heréticos e quase-heréticos mantêm essa posição,
embora esteja seguro de que alguns descartarão a ortodoxia de Stott precisamente
sobre esse terreno.9
O próprio Stott expressa ansiedade quanto às consequências divisivas de
seus novos pontos de vista na comunidade evangélica onde é um renomado líder.
Ele escreve:
—á Sinto-me hesitante em ter escrito essas coisas, em parte porque tenho grande respei
to pela longa tradição que reivindica ser uma correta interpretação das Escrituras,
e nâo a ponho de parte levianamente, e em parte porque a unidade da comunidade
evangélica mundial sempre significou muito para mim. Contudo, o assunto é por
demais importante para ser suprimido, e estou-lhe grato (a Davíd Edwards) por de
safiar-me a declarar meu atual modo de pensar. fJâo dogmatizo a respeito da posição
a que cheguei. Eu a mantenho tentativamente. Mas eu apelo a diálogo franco entre
O S evangélicos com base nas Escrituras.10
O apelo de Stott por um “diálogo franco entre evangélicos com base nas Es
crituras” pode ser muito difícil, se não impossível, de materializar-se. A razão é sim
ples: os evangélicos condicionam-se a seus ensinos denominacionais tradicionais,
assim como os católicos-romanos e ortodoxos orientais. Em teoria, os evangélicos
apelam à sola scriptura, mas na prática muitas vezes interpretam as Escrituras de
acordo com seus ensinos denominacionais tradicionais. Se novas pesquisas bíblicas
desafiam suas doutrinas tradicionais, na maioria dos casos as igrejas evangélicas
preferirão apegar-se à tradição antes que à sola scriptura. A diferença real entre
evangélicos e católicos romanos é que os últimos são pelo menos honestos quanto
à autoridade normativa.
Ser um “evangélico״ significa sustentar certas
,doutrinas tradicionais funda
mentais sem questionamento. Quem quer que questione a validade bíblica de uma
doutrina tradicional pode tomar-se suspeito de ser um “herege”. Numa importante
conferência em 1989 para discutir o que significa ser um evangélico, sérias questões
foram suscitadas quanto a se indivíduos como john Stott ou Philip Hughes deve-
riam ser considerados tais, uma vez que adotaram o ponto de vista da imortalidade
condicional e do aniquilamento dos que não se salvarão, O voto para excluir tais
teólogos não se confirmou por pouco.11
Por que os evangélicos são tão teimosos em recusar reconsiderar os ensi
nos bíblicos sobre a natureza e destino humanos? Afinal de contas, eles toma
ram a liberdade de mudàr outros ensinos tradicionais. Talvez uma razão de sua
insistência em conservar o ponto de vista dualístíco é que. iss!o causa impacto
sobre muitas outras doutrinas. Fizemos notar no inicio deste capítulo que ò
que os cristãos crêem sobre a composição da natureza humana determina em
grande médida o que crêem sobre o destino humano. Abandonar o dualismo
também provoca o abandono de todo ,um conjunto de doutrinas que resultam
disso, especiàlmente á acariciada crença na consciência da vida após a morte.
Isso pode se chamar ‘4efeito dominó”. Se uma doutrina cai, várias cairão jun
tamente. Para esclarecer este ponto, consideraremos brevemente algumas das
implicações ■práticas e doutrinárias do entendimento dualístico clássico. Isso
deve alertar o leitor qiianto à complexidade de suas ramificações.
Im o r t a lid a d e o u R e s s u r r e iç ã o ?
Implicações doduallsmo
Im pl ic a ç õ e s d o u t r in á r ia s
׳ ־ v
O ponto de vista do dualismo clássico dá natureza humana tem enormes
implicações doutrinárias e práticas.. Dou trinar iamente, uma série de crenças
deriva do dualismo clássico ou são disso.dependentes em grande medida. Por
exemplo, a crença na transição da alma, por ocasião da morte, para o paraíso,
inferno ou purgatório repousa sobre a crença de que a alma é imortal por na
tureza e sobrevive ao corpo por ocasião da morte. Isso significa que, se a imor
talidade iníererite da alma se demonstra um conceito antibíblico, então crenças
populares a respeito do paraíso, purgatório e inferno têm que ser radicalmente,
• modificadas ou mesmo rejeitadas. .
A crença de qué por ocasião da morte as almas dos santos ascendem para
á beatitude do Paraíso tem fomentado a crença· de católicos e ortodoxos no
papel intercessório de Maria e dos santos. Se as almas dos santos estão no céu,
é passível de se presumir que podem interceder em favor dos pecadores neces
sitados sobre a Terra. Assim, cristãos devotos rezam a Maria e aos santos para
intercederem em seu favor Tal prática é contrária ao ensino bíblico de que “há
um só mediador entre Deus e os homens; Jesus Cristo., homem” (lTm 2:5). Ain
da mais importante, se a alma hão sobrevive e não pode agir à parte do corpo,
então o ensino todò do papel intercessório de Maria e dos santos deve ser rejei
tado como uma invenção eclesiástica. Verdadeiramente, um reexame do ponto
de vista bíblico da natureza humana pode ter conseqüências assustadoras para
crenças cristãs há muito acatadas.
Semelhantemente, a crença de que por ocasião da morte as almas daqueles
que são. aptos ao perdão transitam no purgatório, tem levado ao ensino dé que a
O DEBATE SOBRE A NATUREZA E O DESTINO HUMANOS
igreja sobre a Terra tem jurisdição para aplicar os méritos de Cristo e dos santos às
almas que ali sofrem. Isso é realizado mediante a concessão de indulgências, ou sejá,
ã remissão da punição temporária devido ao perdão dos pecados. Tal crença condu-
riu à escandalosa venda de indulgências que detonou a Reforma ·Protestante.
Os reformadores eliminaram a doutrina do purgatório como antibíblica, mas
retiveram a doutrina do trânsito imediato após a morte de almas individuais para
um estado de perfeita bênção (Céu) ou para um estado de contínua punição (zn-
/emo). Uma vez mais, se a crença na sobrevivência e funcionamento da alma à
parte do corpo se demonstrar antibíblica, então crenças, populares a respeito do
purgatório, indulgências, e ida das almas para o céu ou inferno devem ser rejeita-
das também como criações eclesiásticas.
A obra que os reformadores começaram eliminando o purgatório devia ser
completada com a redefinição do paraíso e do inferno segundo as Escrituras, e
não segundo as tradições eclesiásticas. E improvável que essa monumental tare
fo seja empreendida por qualquer igreja protestante hoje. Qualquer tentativa de
modificar ou rejeitar doutrinas tradicionais é muitas vezes interpretada como uma
traição da fé e pode causar divisão e fragmentação. Este é um preço muito elevado
que a maioria das igrejas não se dispõe a pagar.
A IMORTALIDADE DA ALMA DEBILITA O SEGUNDO ADVENTO ־
O dualismo tradicional também tem contribuído para enfraquecer a espe
rança do advento. A crença na ascensão das almas para. o Céu pode obsciirècer e
eclipsar a expectativa do segundo advento. Se por ocasião da morte o crente sobe
imediatamente para a beatitude do paraíso para estar com o Senhor, dificilmente
se terá qualquer real senso de expectação para que Cristo desça para ressuscitar os
santos adormecidos. À preocupação primária desses cristãos é alcançar o paraíso
ãmediatamente, mesmo que nã formá de uma alma desincorporáda, Essa preo
cupação dificilmente dá margem a qualquer interesse na vinda do Senhor e na
ressurreição do corpo.
Crer na imortalidade da alma significa considerar-se, pelo menos em parte,
como um indivíduo imortal no sentido de ser incapaz de deixar a existência. Tal
crença encoraja confiança em, si mesmo e na possibilidade de a alma subir ao
Senhor. Por outro lado, crer na ressurreição do corpo significa que a pessoa não
crê em si mesma ou em almas desincorporadas indo para o Senhor; antes, crê em
Cristo, que retornara para erguer os mortos e transformar os vivos. Isso significa
crer na descida do Senhor à Terra para encontrar crentes incorporados, em vez de
na suínda de almas desincorporadas para encontrar o Senhor.
No Novo Testamento a parousia ressalta uma consumação final realizada
por um movimento de descida de Cristo à humanidade, antes que de almas irtdi-
Im o r t a lid a d e o u R e s s u r r e iç ã o ?
viduais subindo até Ele. A esperança do advento não é uma vaga expectativa sem
nexo, mas um encontro verdadeiro sobfe a Terra entre os crentes incorporados e
Cristo no glorioso dia do seu retomo. Por ocasião dessa reunião real ocorrerá uma
transformação que afetará a humanidade e a natureza. Essa grande expectativa é
obscurecida e eliminada com a crença da imortalidade individual e ventura ceies-
tial imediatamente após a morte.
Outra implicação significativa da esperança individualista de imortalidade
imediata é que eia supera a esperança bíblica corporativa de restauração derradei
ra desta criação e de suas criaturas (Rm 8:19*23; ICo 15:24-28). Quando o único
futuro que realmente interessa é a sobrevivência individual da alma após a morte,
a angústia da humanidade pode ter somente interesse periférico e o valor da re
denção divina para este mundo inteiro é ignorado em grande medida. O resultado
final dessa crença é, como fez notar Abraham Kuyper, que ״os cristãos, em sua
maioria, não pensam muito além de sua própria morte”.12
F a l sa s c o n c e p ç õ e s so b r e o m u n d o p o r v ir
O dualismo clássico também tem fomentado idéias errôneas a respeito do
mundo vindouro. O conceito popularizado de paraíso como um retiro espiritual
em alguma parte do espaço sideral onde almas glorificadas passam a eternidade em
eterna contemplação, tem sido mais inspirado pelo dualismo platônico do que pelo
realismo bíblico. Para Platão, os componentes materiais deste mundo eram maus e,
eonseqüentemente, indignos de sobreviver. A meta seria atingir o reino espiritual
onde almas libertas da prisão corporal desfrutam a bem-aventurança eterna.
No decurso
,de nosso estudo, veremos que tanto o Antigo quanto o Novo
Testamento rejeitam o dualismo entre o mundo material embaixo e o reino es
piritual acima. À salvação final inaugurada pela vinda do Senhor é considerada
nas Escrituras não como um escape deste mundo, mas uma transformação do mes
mo. O ponto de vista bíblico do mundo por vir não é um retiro espiritual celeste,
habitado por almas glorificadas, mas este planeta Terra físico, habitado por santos
ressuscitados (Is 66:22; Ap 21:1).
I m p l ic a ç õ e s p r á t ic a s
Num nível mais prático, o ponto de vista dualístíco clássico tem fomentado
o cultivo da alma à parte do corpo e a supressão de apetites físicos e impulsos
salutares naturais. Contrariamente à perspectiva bíblica da bondade da criação di
vina, inclusive os prazeres físicos do corpo, a espiritualidade medieval promovia a
mortificação da carne como um meio de alcançar a divina meta da santidade. Os
santos são retratados como pessoas que se dedicam primariamente à vita contem
O DEBATE SOBRE A NATUREZA E O DESTINO HUMANOS
plativa (vida contemplativa), desligando-se da vita activa (vida secular). Uma vez
que a salvação da alma tem sido vista como mais importante do que a preservação
do corpo, as necessidades físicas do corpo muitas vezes têm sido íntencionalmente
ignoradas ou até suprimidas.
~4> A dicotomia entre corpo e alma, o físico e o espiritual, está ainda presente no
pensamento de muitos cristãos hoje. Muitos ainda associam redenção com a alma
humana, antes que com o corpo humano. Descrevemos a atividade missionária da
Igreja como a de ״salvar almas”. Isso deixa implícito que as almas são mais impor
tantes do que os corpos. Conrad Bergendoff faz a observação precisa de que
os evangelhos não fornecem base para uma teoria de redenção que salve almas à
parte dos corpos aos quais pertencem. O que Deus ajuntou, filósofos e teólogos
não deviam separar. Mas estes têm sido culpados de divorciar os corpos e almas
dos homens que Deus criou como um por ocasião da criação, e a culpa deles não
é diminuída por seu apelo de que assim a salvação seria facilitada. Até termos
uma teoria de redenção que atenda toda a necessidade do homem falhamos em
compreender o propósito daquele que se fez carne para que pudesse ser capaz de
salvar a humanidade.13
O SURGIMENTO DO MODERNO SECULAR1SMO
Alguns eruditos mantêm que o dualismo clássico tem sido a instrumentalída-
de no surgimento do secularismo moderno e na progressiva erosão da influência
cristã sobre a sociedade e a cultura.H Acham uma relação entre o secularismo
moderno que exclui a religião da vida, e a distinção corpo-alma da cristandade
(tradicional. Também vêem uma relação entre o secularismo e a distinção natu
reza-graça articulada especialmente por Tomás de Aquino. Segundo este último,
a razão natural é suficiente para viver a vida natural deste mundo, enquanto a
graça se faz necessária para viver a vida espiritual e alcançar a meta da salvação.
Assim, a distinção escolástica corpo-alma permitiu que a vida fosse dividida em
dois compartimentos estanques: vita activa e vita contemplativat ou, poderíamos
dizer, vida secular e vida espiritual
Essa distinção fínalmente conduziu à crença de que o cristianismo devia
preocupar-se basicamente com a salvação das almas das pessoas, enquanto o
estado devia ser responsável pelo cuidado do corpo. Isso significa que o estado,
e não a igreja, deve preocupar-se com educação, ciência, tecnologia, sistemas
econômicos, questões sociais e políticas, ou cultura geral e valores públicos.
O resultado da distinção corpo-alma é que os cristãos têm submetido
vastas áreas da vida, valores morais e conhecimento, às forças do secularismo
e humanismo. Os métodos de ensino e os compêndios escolares, mesmo nas
escolas cristãs da nação, refletem mais filosofias humanísticas do que pontos
de vista bíblicos O impacto total do dualismo corpo ־■alma é impossível de
avaliar. Dividir os seres humanos em cor£o e alma tem promovido toda sorte
de falsas dicotomias na vida humana.
O DUALISMO NA LITURGIA .
A influência do dualismo pode ser vista até mais frequentemente em mui
tos hinos, orações e poemas cristãos. A sentença de abertura da oração fúnebre
que se acha no The Book ofCommon Prayer [Livro de oração comum] da Igreja
da Inglaterra é nitidamente dualística: “Em face de que agradou ao Deus Todo-
Poderoso por sua grande misericórdia tomar para si a alma de nosso querido
irmão que aqui parte, portanto confiamos o seu corpo ao solo.15״ Declaração
noutra prece ressalta novamente uma clara concepção dualística para a exis-
têncià física: “Cóm quem as almas dos fiéis, após terem sido libertas do peso da
carne, estão em gozo e felicidade.״
A noção platônica da libertação da alma da prisão corporal é claramente
estabelecida nas linhas do poeta cristão John Donne: “Quando os corpos a suas
tumbas; almas das tumbas removem.16״ Muitos de nossos hinos são poemas dua-
lísticos mal-diifarçados, Quão frequentemente nos é pedido para considerar esta
vida presente como urna “cansativa peregrinação״ e esperar o escape final aos
céus, “nas maiores alturas”.
Exemplos de hinos que manifestam hostilidade para com esta vida terreal,
escapismo religioso, e visão doutro-mundo podem ser facilmente encontrados nos
hinários da maioria das denominações cristãs. Alguns hinos retratam a Terra como
uma prisão da qual o crente e liberto para ascender ao lar celestial: “A casa de meu
Pai está edificada no alto, bem no além, acima do céu estrelado. Quando liberto
desta prisão terreal, aquela mansão celeste será minha.” Outros hinos descrevem
o cristão como um forasteiro que mal pode esperar para deixar este mundo: “Aqui
neste país tão escuro e triste, por muito tempo tenho vagueado solitário e cansa
do.״ “Sou apenas um estranho aqui, o céu é o meu lar; a Terra é um deserto triste,
o céu é-o mèu lar.” “Desejo viver acima.do mundo... no planalto celestial.”
Os cristãos que acreditam nas palavras desses hinos podem decepcionar-se
um dia quando descobrirem que o seu eterno lar não é “acima do mundo... no
planalto celestial”, mas aqui embaixo, sobre a Terra. Este é o planeta que Deus
criou, redimiu e por fim restaurará para nossa eterna habitação. A.visão bíblica do
mundo por vir é explorada no capítulo 7. .
As implicações de amplo alcance e práticas do ponto de vista dualístico da
natureza humana que acabamos de considerar devem servir para impressionar o lei
tor com a importância do tema ora sob consideração. O que abordamos neste livro
não é uma mera questão acadêmica, mas um ensino bíblico fundamental que causa
impacto direta ou indiretamente sobre uma porção de práticas e crenças cristãs.
Im o r t a lid a d e o u R e s s u r r e iç ã o ?
A s IMPUCAÇÓES DO HOUSMO BÉBUOO
V isão p o s it iv a d o f ís ic o e e s p ir it u a l
Como o dualismo clássico, o hoíísmo bíblico afeta o entendimento que temos
de nós mesmos, deste mundo presente, da redenção e de nosso destino Anal. Uma
vez que no desenrolar deste estudo examinamos extensamente várias das implicações
doutrinárias e práticas do holismo bíblico, somente aludirei a algumas delas aqui.
O ponto de vista holístico-bíblico da natureza humana, segundo o qual nosso
corpo e alma são uma unidade indissolúvel, criados e redimidos por Deus, desafia-nos
a considerar posítivamente tanto os aspectos físicos quanto espirituais da existência.
Honramos a Deus não só com a mente, mas também com o corpo, porque nosso corpo
é o “templo do Espírito Santo״ (ICo 6:19). As Escrituras nos admoestam a apresehtar
nofi»*,acorpos em sacrifício vivo״ (Rm 12:1). fcso significa auè a maneira como tia-
.«amos nossos cornos reflete a condição espiritual de nossas almas. Se poluímos nossos
copos com fumo, drogas e má alimentação, não só provocanios a poluição física de
nossos corpos, como também a poluição espiritual de nossas álmas.
Henlee H. Barnette observa que “o que as pessoas fazem por e cqm outros e
aguo seu meio-ambiente
,depende em grande medida do que pensam sobre Deus,
ajiatureza, eles próprios e o seu destino17 .״,Quando os cristãos consideram״se e ao
mundo presente holisticamente como objetos da boa criação e redenção de Deus,
seião tanto convencidos quanto compelidos a agir como mordomo$ de Deus de
»eus corpos, bem como da ordem criada.
P reocupação com a pessoa integral
O holismo bíblico desafia-nos à preocupação com a pessoa integral. Em
n a pregação e ensino, a igreja deve atender não só as necessidades espirituais
da alma, como as necessidades físicas do corpo. Isso significa ensinar às pessoas
- como manter a saude física e emocional. Significa'que os programas da igre-
']a n ã o devem negligenciar as necessidades do corpo. Alimentação aptopriada,
exercícios e atividades ao ar livre devem ser incentivados como aspectos impor-
tantes do viver cristão.
Aceitar a perspectiva holístico-bíblica da natureza humana significa optar
por uma metodologia holística em nossos esforços evangelísticos e missionários.
Essa metodologia consiste não só em salvar as “almas” das pessoas, mas também
melhorar suas condições, de vida atuando em áreas tais como saúde, regime ali
m entar e educação. O alvo deve ser o de servir ao mundo, não evitá-lo,« As ques-
fSesde justiça social, guerra, racismo, pobreza,.e desequilíbrio econômico devem
-fazer parte das preocupações daqueles que creem qúe Deus está operando para
restaurar a pessoa integral e o mundo inteiro. v
.O DEBATE SOBRE A NATUREZA £ O DESTINO HUMANOS
Im o rta lid a d e o u R ess u r r eiç ã o ?
A educação cristã deve promover o desenvolvimento da pessoa inteira. Isso
significa que o programa escolar deve vitfar ao desenvolvimento dos aspectos men
tal, físico e espiritual da vida. Um bom programa de educação física deve ser
considerado tão importante quanto os programas acadêmico e religioso. Os pais e
professores devem preocupar-se em ensinar bons hábitos alimentares, o apropria
do cuidado do corpo e um programa regular de exercício físico.
O conceito bíblico da pessoa integral também tem implicações para a medici
na. A ciência médica recentemente desenvolveu o que é conhecido como medicina
holística. Os profissionais de medicina holística 4‘destacam a necessidade de consi
derar a pessoa integral, incluindo condição física, nutrição, constituição emocional,
estado espiritual, valores de estilo de vida, e meio ambiente18.״ Na cerimônia de
graduação de 1975 da Escola de Medicina da Universidade Johns Hopkins, o Dr.
Jerome D. Frank disse aos formandos: “Qualquer tratamento de uma enfermidade
que não ministre também ao espírito humano é grosseiramente deficiente.19״ A cura
e manutenção da saúde física deve sempre envolver a pessoa total.
R e d e n ç ã o c ó s m ic a
O ponto de vista hoiístico da Bíblia quanto à natureza humana pressupõe uipa
visão cósmica da redenção que abrange o como e a alma, o mundo material e o es-
22 pirituah A separação entre corpo e alma ou espírito é frequentemente comparada à
divisão entre o reino da criação e o reino da redenção. O último tem sido associado
em grande medida, tanto no catolicismo quanto no protestantismo, à salvação das
almas dos indivíduos à custa das dimensões física e cósmica da redenção. Os santos
são muitas vezes retratados como peregrinos que vivem sobre a Terra mas são des
ligados do mundo, cujas almas na morte deixam de imediato seus corpos materiais
para ascender a um lugar abstrato chamado “céu”. Esse ponto de vista reflete o dua
lismo clássico, mas fracassa, como veremos ao longo deste estudo, em representar o
ponto de vista holístico-bíblico da criação humana e sub-humana.
Notamos anteriormente que o dualismo tradicional produziu uma atitude
de desprezo para com o corpo e o mundo natural. Esse distanciamento do mundo
reflete-se em linguagem de hinos tais como “Este mundo nao é meu lar”, “Sou um
estranho aqui, o Céu é o meu lar; a terra é um árido deserto, o Céu é o meu lar”.
Tal atitude de desdém para com nosso planeta está ausente dos Salmos, o hinário
hebreu, onde o tema central é o louvor de Deus por suas obras magníficas. No
Salmo 139:14, Davi declara: “Eu te louvarei pois fui formado de modo tremendo
e maravilhoso: grandiosas são as tuas obras; isso minha alma conhece muito bem”
(NIV). Aqui o salmista louva â Deus por seu maravilhoso corpo, um fato bem co
nhecido por sua alma (mente). Este é um bom exemplo do pensamento hoiístico,
onde o corpo e alma são parte da maravilhosa criação de Deus.
v_/ LJfcJJAih bLJtíKt A (SIA1 UKt£A t U Dt5 i ilNU I1U MANUS
No Salmo 92, o salmista insta todos a louvarem a Deus com instrumentos
musicais, porque, diz ele: “Tu, ó Senhor, alegraste-me por tuas obras; canto de
alegria pelas obras de tuas mãos. Quão grandes são as tuas obras, ó Senhor! ״ a
92:4-5). O regozijo do salmista com seu maravilhoso corpo e maravilhosa criação
baseiam-se em sua concepção holística do mundo criado como parte integral de
todo o drama da criação e redenção.
O REALISMO BÍBLICO
O ponto de vista do holismo bíblico também causa impacto sobre nossa visão
do mundo por vir. No capítulo 7 aprenderemos que a Bíblia não retrata o mundo por
vir como um paraíso etéreo onde almas glorificadas passarão a eternidade trajando
vestes brancas, cantando, tocando harpas, orando, perseguindo nuvens e bebendo o
néctar dos deuses. Antes, a Bíblia fala dos santos ressurretos habitando este planeta
purificado, transformado e tomado perfeito por ocasião da vinda do Senhor e em
(unção disso (2Pe 3:11-13; Rm 8:19-25; Ap 21:1). Os “novos céus e uma nova ter
ra” (Is 65:17) não são um retiro espiritual remoto e inconseqüente nalgum recanto
do espaço; antes, são o céu e a Terra presentes renovados à sua perfeição original.
Os crentes entram na nova terra, não como almas desincorporadas, mas
como pessoas ressuscitadas em seus corpos (Ap 20:4; Jo 5:28-29; lTs 4:14-17).
Conquanto nada impuro possa entrar na Nova )erusalém, afirma-se que “os reis
da terra trarão para ela a sua glória... a ela trarão a glória e honra das nações” (Ap
21:24, 26). Tais versos sugerem que tudo quanto tem real valor nos antigos céu e'
Terra, inclusive as realizações da inventividade artística e conquistas intelectuais,!
encontrarão seu lugar na. ordem dia eternidade ^própria imagem da *Tidade” I
transmite a idéia de atividade, vitalidade, criatividade e relacionamentos reais.
É pena que essa visão terrena fundamentalmente concreta do novo mundo de
Deus retratado nas Escrituras tenha sido em grande parte perdida de vista e substi
tuída na religiosidade popular por um conceito etéreo, espiritualizado do Céu. O úl
timo tem sido influenciado mais pelo dualismo platônico que pelo realismo bíblico.
C o n c l u s ã o
Historicamente, duas visões principais, radicalmente diferentes da natureza
humana, têm sido mantidas. Uma é chamada de clássica e é conhecida como ho-
fano bíblico. O ponto de vista dualístíco mantém que a natureza humana consiste
de um corpo material, mortal, e uma alma espiritual, imortal. A última sobrevive
à morte do corpo e parte para o Céu, ou purgatório ou inferno. Por ocasião da res
surreição, a alma é reunida ao corpo. Essa concepção dualística tem exercido um
enorme impacto sobre a vida e pensamento cristãos, afetando a visão que as pessoas
têm da vida humana, deste mundo presente, da redenção e do mundo do além.
Im o r t a lid a d e o u R e s s u r r e iç ã o ?
Em tempos recentes, a visão dualística da natureza humana tem sofrido ata׳
ques de eruditos bíblicos, historiadores eclesiásticos, filósofos, e cientistas. Peritos
bíblicos examinaram os termos e textos antropológicos e concluíram que o ponto
de vista bíblico da natureza humana não é de modo algum dualístico, mas clara׳
mente holístico. Muitas vozes de diferentes tendências estão afirmando hoje que
o dualismo está perdendo terreno para o holismo.
A pesquisa precedente do debate em andamento quanto à posição bíblica
da natureza humana demonstrou a importância
,O INCONSCIÊNCIAUma terceira razão para o uso dajnetáfora do “sono” é sugerida pelo fato de que não há consciência do lapso de tempo no sono. Assim, a metáfora propicia uma representação adequada do estado de inconsciência dos falecidos entre a morte e a ressurreição. Eles não têm consciência da passagem do tempo. Em seus primeiros escritos, Lutero expressou o seu pensamento de uma forma bem vívida: Assim como alguém que caí no sono e atinge a manhã sem esperar quando des״perta, sem saber o que lhe ocorreu, de igual modo subitamente despertaremos no ultimo dia sem saber como chegamos à morte e por ela passamos”64. Novamente Lutero escreveu: ״Dormiremos até que Ele venha e bata na pequena tumba e diga: Doutor Martinho, erga-se! Então me levantarei num momento e serei feliz com Ele para sempre”65.Para efeito de precisão, deve-se assinalar que mais tarde Lutero rejeitou em grande escala a noção de sono inconsciente na morte, supostamente devido ao vigoroso ataque de Calvino a essa doutrina. Em seu Commenuxry on Genesis [Comentário sobre Gênesis], que redigiu em 1537, Lutero comenta: “A alma que partiu não dorme nessa maneira [sono regular]; é, falando-se mais apropriadamente, desperta e tem visão e conversação com os anjos e com Deus”60. A mudança de posição de Lutero do estado inconsciente para consciente na morte apenas seiyg_ para mostrar que mesmo reformadores influentes não estavam isentos de pressões , teológicas de seu tempo.i i . V l o r v w u i u L i v ^ n l / / i «-A semelhança de Lutero, a maioria dos cristãos hoje crê que a metáfora do 41sono” não é empregada na Bíblia para ensinar o estado inconsciente, mas que “haverá uma ressurreição, um despertar67״. Alguns eruditos alegam que a morte é comparada a um sono “não porque a pessoa esteja inconsciente, mas porque os mortos não retomam à Terra nem estão cônscios do que se passa onde outrora viveram’1.08 Em outras palavras, os mortos estão inconscientes no que tange ao que acontece sobre a Terra, mas bastante conscientes quanto a sua vida no Céu ou inferno.Essa conclusão não tem por base as Escrituras, mas o emprego da metáfora de ,*sono’1 na literatura intertestamentária. Por exemplo, Enoque, datado de cerca do ano 200 a.G, tala dos justos como tendo “um longo sono11 (100:5), mas suas almas estando conscientes e ativas no Céu (102:4, 5; c í 2 Baruque 36:11; 2 Esdras 7:2). Após examinar essa literatura, John Cooper conclui: “As metáforas de sono e descanso são empregadas quanto a pessoas no estado intermediário que estão conscientes e ativas, mas não em formas corporais, terrenas”69.O significado bíblico da metáfora do “sono״ não pode ser decidido com base em seu emprego na literatura intertestamentária, porque, como vimos, durante esse período os judeus helenistas tentaram harmonizar os ensinos do Antigo Testamento com a filosofia dualística grega de seu tempo. O resultado foi a adoção de crenças tais como a imortalidade da alma, a recompensa ou punição dadas imediatamente após a morte e orações pelos mortos. Taís crenças são estranhas à Bíblia.Nosso estudo da metáfora de “sono" no Antigo e no Novo Testamento demonstrou que a metáfora deixa implícito um estado de inconsciência que perdurará até o despertar da ressurreição. É digno de nota que em 1 Coríntios 15, Paulo emprega 16 vezes o verbo egetro, que literalmente significa “despertar” do sono.'0 O reiterado contraste entre o dormir e o acordar é impressionante. À Bíblia emprega o termo “sono” com frequência porque envolve uma verdade vital: a de que os mortos que dormem em Cristo estão inconscientes de qualquer lapso de tempo até sua ressurreição. O crente que morre em Cristo adormece e descansa inconsciente até ser despertado quando Cristo o chamar de volta à vida por ocasião de sua vinda,O SENTIDO E FUNDAMENTO DA IMORTALIDADEA imortalidade na Bíblia não é uma posse humana inata, mas um a tribu to divino. O termo “imortalidade” deriva do grego athanasia, que significa “ausêiv cia de morte”, e, portanto, existência infindável. Esse termo ocorre somente duas vezes; primeiro com relação a Deus, “o único que possui imortalidade” (lTm 6:16) e, em segundo lugar, com relação à mortalidade humana que deve revestir-se da imortalidade_£iCo !5;.53J por ocasião de sua ressurreição. A últi׳Im o r ta lid a d e o u R essurreição?ma referência nega a noção de uma imortalidade natural da alma, porque decla- ra que a imortalidade é algo de que os santos ressuscitados se ״revestirão״. Não é algo de que já sejam possuidores,base da imortalidade’1, como declara Vem Hannah, “é soteriológica e não an tropologica”. 71*Q que isso significa é que a imortalidade é um dom divino aos salvos e não uma possessão humana natural. Como R T. Forsyth declarou, “uma segura crença na imortalidade não se assenta onde a filosofia a coloca, mas onde a religião a situa, Não se fundamenta sobre a natureza do organismo psíquico, mas sobre sua relação com Outro”,72 Este “Outro” é Jesus Cristo, que “não só destruiu a morte, como trouxe à luz a vida e a imortal idade” (2TmEm parte alguma a Bíblia sugere que a imortalidade é uma qualidade natural ou direito dos seres humanos. A presença da “árvore da vida” no jardim do Eden indica que a imortalidade era condicional à participação do fruto de tal árvore. As Escrituras ensinam que a imortalidade deve ser “buscada” (Rm 2:7) e “revestida” (ICo É, como a “vida eterna״, um dom de Deus (Rm6:23) a ser herdado (Mt 19:29) por conhecer a Deus ()o 17:3) através de Cristo (Jo 14:19; 17:2; Rm 6:23). A perspectiva de Paulo da imortalidade está ligada unicamente à ressurreição de Jesus (ICo 15) como fundamento e penhor da esperança do crente.75 Os que insistem em encontrar a idéia filosófica de imortalidade da alma na Bíblia ignoram a revelação de Deus e inserem idéias *40 do dualismo grego na fé bíblica.C onclusãoA crença tradicional e popular de que a morte não é a cessação da vida para a pessoa integral, mas a separação da alma imortal do corpo mortal, pode ser identificada com a mentira de Satanás “E certo que não morrereis” (Gn 3:4). Essa mentira persiste em diferentes formas ao longo da história humana até" o presente. Hoje, a crença da sobrevivência da alma, seja no paraíso ou no inferno, é promovida não por meio das toscas representações literárias e artísticas da Idade Média, mas por meio da polida imagem de médiuns, paranormais, de sofisticadas pesquisas “científicas” em experiências de quase-morte, e da popular canalização da Nova Era com espíritos do passado. Os métodos de Satanás mudaram, mas seu objetivo é o mesmo: fazer as pessoas crerem na mentira de que não importa o que façam, não morrerão, mas se tornarão como deuses para viver para sempre.O ponto de vista tradicional da morte limita a experiência da morte ao corpo, uma vez que a alma continua sua existência. Vem Hannah apropriadamente declara que “tal redefinição radical da morte é, de fato, uma negação da morte - uma definição, sem duvida, que a ‘sutil serpente’ de Gênesis 3 acharia muitoA VISÃO BÍBLICA DA MORTEatraente”74. A Bíblia leva a morte muito mais a sério. A morte é o último inimigo (lCo 15:26) e não o libertador da alma imortal. Como Oscar Cullmann destaca que “a morte é a destruição de toda a vida criada por Deus. Portanto, é a morte, e não o corpo, que deve ser vencida pela ressurreição”/ 5Helmut Thielicke fez a profunda observação de que a idéia de imortalidade da alma é uma forma de escapismo que permite à pessoa “real” evadir-se da morte. É uma tentativa de desarmar a morte. Ele prossegue explicando quepodemos apegar-nos ídealisticamente a alguma “região inviolável do ego”, mas a morte não é um "passar adiante”, e sim um "descer", e não deixa qualquer espaço para o romanticismo ou idealismo. Não devemos desvalorizar nem obscurecer a realidade da sepultura mediante a idéia da imortalidade. A perspectiva cristã é a ressurreição, não a imortalidade da alma/,0Nossa única proteção contra as falsas concepções populares da morte é um claro entendimento do que a Bíblia ensina sobre a natureza da morte. Descobrímos que tanto o Antigo quanto o Novo Testamento claramente ensinam que a morte é a extinção da vida para a pessoa integral. Não hã lembrança nem consciência na morte (SI 8:5; 1 4 6 ^ jO :9; 115:17; Ec 9:5). Não há existência independente do espírito ou alma à parte do corpo. A m ort^é a^perda do ser totai e não meramente a perda do bem^£Sí.ar. A pessoa inteira repousa na sepultura num estado de inconsciência caracterizado na Bíblia como “sono”. O “despertar” desse sono terá lugar quando Cristo vier e chamar de volta à vida os santos adormecidos.A metáfora do “sono” é freqüentemente utilizada na Bíblia para caracterizar o estado dos mortos porque representa adequadamente o estado inconsciente dos mortos e seu despertar no dia da vinda de Cristo. Sugere que não há consciência do lapso de tempo entre a morte e a ressurreição. A metáfora do “sono” é verdadeíramente uma bela e terna expressão que indica que a morte não é o destino humano final, porque haverá um despertar do sono da morte na manhã da ressurreição.Um destacado desafio para nossa conclusão de que a morte na Bíblia é a extinção da vida para a pessoa integral deriva de interpretações infundadas de cinco textos neotestamentários (Lc 16:19-31; 23:42-43; Fp 1:23; 2Co 5:1-10; ^Ap 6:9-11) e de duas palavras, sheol e hades, empregadas na Bíblia para descrever o lugar de habitação dos mortos. Muitos cristãos encontram nesses textos e palavras bíblicas apoio para sua crença na existência consciente da alma após a morte. Prosseguiremos examinando no capítulo 5 esses textos e palavras que dão enfoque à condição dos mortos durante o período intermediário entre a morte e a ressurreição, comumente chamado de “estado intermediário”.Imortalidade ou Ressurreição׳R e f e r ê n c i a s1 Ray S. Anderson» Theology, Death and Dying (Nova York, 1986), 104.2 Ver Hans Schwarz, 1'Luther's Understanding o f Heaven and Hell”, interpreting Luther s Legacy,ed. F. W. M euser e S. D. Schneider (Mineapolis, 1969), 83-94·O ׳ texto dessa obra é encontrado em Tracts and Treatises of the Reformed Faith, de Calvino, trad.H. Beveridge (Grand Rapids, 1958), Vol. 3, 4 1 3 4 9 0 .־4 Ver, por exemplo, Charles Hodge, Systematic Theology (Grand Rapids, 1940), Vol. 3 .W ;״ 713-30G. T Shedd, Dogmatic Theology (Grand Rapids, n.dL), Vol. 2, 591-640. G. C. Berkouwer, The Return o/Christ (Grand Rapids, 1972), 32 ־64. Westminster Confession, chap. 32, como cirado por John H. Leith, ed., Creeds of the Churches ׳(Atlanta, 1977), 228,6 Ver David Hume, A Treatise of Human Nature (Publicado em 1739). Para uma breve mas ilumina- dora pesquisa daqueles que atacavam a crença na vida do além-túmulo, bem como os que reviveram tal crença, ver Robert A, Morey, Death and the Afterlife (Mineapolis, 1984), 173-184. f K, Osis e E. Haraldson, At the Hour o f Death (Avon, 1977), 13.8 Ibid., 13-14. Ver também W. D. Rees, “The Hallucinations of Widowhood”, RMJ 4 (1971), 37-41; G. N. M. Tyrrell, Apparitions (Duckworth, 1953}, 76-77.9 Paul Badham e Linda Badham, Im??iorfaJity or Extinction? (Totatwa, Nova Jersey, 1982), 93-94. IJ Ibid.» 94.11 Ibid., 98.12 Ibid., 95-98.14 Estas características são tomadas do relatório do psiquiatra americano Raymond A. Moody, que escreveu dois livros originais sobre este assunto, Life After Life (1976) e Reflections on Life After Life (1977). O relatório de Moody é citado por Hans Schwarz (referência 14), 4 0 4 1 -־14 Para uma discussão de experiências de quase-morte ao longo da história, ver Hans Schwan,Beyond the Gates of Death; A Biblical Examination of Evidence for Life After Death (Mineapolis, 1981), 37-48.15 Platão, Republic, 10, 614, 621, em Edith Hamilton e H untington Cairns, eds., The CollectedDialogues of Plato including the Letters (Nova York, 1964), 839, 844·16 Ibid., 844. Ver C. S. King, Psychic and Religious Phenomena (Nova York, 1978). Para literatura adicional ׳‘sobre o assunto, ver Stanislav Grof e Christina Grof, Beyond Death;The Gates of Consciousness (Nova York, 1989); Maurice Rawlings, Beyond Death's Door (Nova York, 1981); John J. H eaney, The Sacred and the Psychic: Parapsychology and the Christian Theology (Nova York, 1984); Hans Schwarz, Beyond the Gates o f Death: A Biblical Examination of Evidence for Life After Death (Mineápolis, 1981). lá Paul Badham e Linda Badham (referência 9), 88.19 Na capa de R. A. Moody, Life after Life (Nova York, 1975).20 Ibid., 1S2.21 Editorial, Lancet (24 de junho de 1978).21 Paul Kurtz, “Is There Life After Death?”, uma dissertação submetida à Oitava Conferência Internacional sobre a Unidade das Ciências, Los Angeles, novembro de 1979.25 Paul Badham e Linda Badham (referência 9), 81.24 Ray S. Anderson (referência 1), 109.25 K. Osis e E. Haraldsson (referência 7), 197.26 Alguns dos estudos significativos sobre o movimento Nova Era são: Vishal Mangahvadi, Whenthe Nerv Age Gets Old: Looking for a Greater Sp>frirî affiw (Downers Grove, Illinois, 1992); TedA VISÃO BÍBLICA DA MORTEPeters, The Cosmic Sei/, A Penetrating Look at Todays New Age Movements (Nova York, 1991); M ichael Perry, Gods Within: A Cnricni Guide to the New Age (Londres, 1992); Robert Basil, ed., Nor Necessarily the New ,Age (Nova York, 1988).2' Elliot Miller, A Crash Course on the New Age Movement (Grand Rapids, 1989), 183.Ibid., 141.24 Ibid., 144·50 Lynn Smith, ‘T h e New, Chic Metaphysical Fad of Channeling", Los Angeles Times (5 de de zembro de 1986), Parte V״ A núncio publicitário, The Whole Person, julho de !987, 1.t: Ver Nina Easton, “Shirley MacLaine’s Mysticism for the Masses”, Los Angeles Times Magazine (6 de setembro de 1987), 8.” Alan Vaughan, “Channels-Historic Cycle Begins Again”, Mobtus Reports (primavera/verão 1987), 4-14 “Jesus” (ao longo de Virginia Essene, “Secret Truths - W hat Is Life?”). Life Times, 1, p. 3, como citado em Elliot Miller {referência 27), 172.35 Elliot Miller (referenda 27), 178,36 Oscar Cullmann, “Immortality of the Soul or Resurrecdon of the Dead?” em Jmmomhty andResurrection. Death in the Western World: Two Conflicting Currents of Thought, Krister Stendahl, ed., (Nova York, 1965), 12-20.37 Ibid., 16, 17. w Ibid., 19,ia Ibidem.4,·' Catechism of the Catholic Church (Roma, 1994), 265.41 Augustus Hopkins Strong, Systematic Theology {Old Tappan, Nova Jersey, 1970), 982.42 Henry Clarence Thiessen, Lectures in Systematic Theology (Grand Rapids, 1979), 338.42 Francis Pieper, Christian Dogmatics, trad. Theodore Engelder (St. Louis, 1950), Vol. 1, 536.44 Paul A khaus, Die Lenten Dinge (Gutersloth: Alemanha, 1957), 15745 Ibid., 155 4i> Ibidem.47 Ibid., 156.* Ibid., 158.40 John A. T. Robinson, The Body, A Study in Pauline Theology (Londres, 1957), 14. v Taito Kantonen, Life After Death (Philadelphia, 1952), 18.51 E. Jacob, “Death”, The Interpreters Dictionary o f the Bible {Nashville. 1962), Vol. 1, 802.H ’־־ erm an Bavink, "D eath”, The International Standard Bible Encyclopaedia (Grand Rapids, i960), VoL 2,812.E. Jacobs (referenda 51), 803.>4 Howard W. Tepker, “Problems in Eschatology: The Nature of D eath and the Intermediate State״, The Springflelder (verão de 1965), 26.” Basil K C. Atkinson, Life and Immortality (Taunton, Inglaterra, s.d.), 38.Ênfase suprida.Ênfase suprida.* W. Robertson Nicoll, ed.rE ^osiio rs Bible (Nova York, 1908), 362.54 Ênfase suprida.